Rio Potengi: história e beleza
Data: 18/02/2023
Parte I
O Rio Potengi nasce nas quebradas da Serra de Santana, nas terras de Cerró Corá, e passa por várias cidades (São Tomé, Barcelona, São Paulo do Potengi, São Pedro, Ielmo Marinho, São Gonçalo do Amarante, Macaíba), percorrendo 176 quilômetros até chegar a sua foz, em Natal, onde deságua no oceano Atlântico.
Do Rio Grande do Norte, não é o maior nem o principal rio do Estado, diante do Rio Piranhas/Açu (447 km – Serra de Piancó/PB a Macau) e do Rio Apodi/Mossoró (210 km – Serra de Luís Gomes/RN a Areia Branca); mas é o que banha em maior extensão Natal, com significativo estuário, de beleza rara incandescente, por onde seus primeiros visitantes chegaram, cuja importância para o surgimento e desenvolvimento da cidade a história registra.
Pelos colonizadores, era chamado de Rio Grande pela sua extensão, denominação dada também à capitania no período colonial, doada a João de Barros e Aires da Cunha pelo Rei Dom João III, em 1530, inspirando, mais tarde, o nome do Estado: Rio Grande do Norte. Só veio a ser chamado de Potengi tempos depois, que significa em Tupi “água de camarão”, inicialmente grafado de Potigi.
A cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, nasceu e se desenvolveu “à sombra” de um Rio, o Potengi. Em sua história de mais de quatrocentos anos, a cidade ora se aproxima, ora se distancia do rio, num movimento que não é somente físico, mas também social e simbólico (Rubenilson B. Teixeira – Confins).
O Rio Potengi foi testemunha ocular da fundação de Natal e de seu desenvolvimento. Relembrar essa história é salutar e encantadora, toca a alma do natalense, situando-o no espaço e no tempo.
Apesar da tentativa de ocupação com a doação da Capitania a João de Barros e Aires da Cunha, a colonização resultou em fracasso, facilitando a invasão dos franceses, que dominaram a área, contrabandeando pau-brasil. Dominação ocorrida de 1530 até 1598.
Com a expulsão dos franceses, os portugueses descobriram o Rio Potengi e a sua importância, passando a explorar o interior do Estado para, em seguida, fixar-se às suas margens.
A partir daí construíram o Forte dos Reis Magos, com o projeto do Padre Gaspar de Samperes, em 1598, ao lado da desembocadura do Rio Potengi, edificação importante para conquista do território.
Depois disso, foi fundada Natal, em 1599, por Manoel Mascarenhas Homem, então Capitão-Mor de Pernambuco e encarregado por D. Felipe II (Rei da Espanha/Portugal) a iniciar o povoamento da Capitania do Rio Grande, e por Jerônimo de Albuquerque, bravo guerreiro e capitão da tropa, fruto da segunda expedição portuguesa para colonizar a área, com a construção da Igreja Matriz, e ao seu redor, as primeiras casas, na Cidade Alta.
Assim a cidade começou, vendo o encontro constante e tranquilo do rio e o mar, vendo o sol adormecer no seu leito.
Tudo era descoberta, tudo era esplendor.
Mas, a calmaria das águas do Potengi não durou por muito tempo. Em 1633, os holandeses invadiram o Rio Grande do Norte, tomaram o forte e dominaram Natal, alterando o nome da cidade para “Nova Amsterdã” e o Forte dos Reis Magos para “Fortaleza Keulen”.
Ao aqui chegando, os holandeses, aliados aos índios locais, tomaram os engenhos de açúcar; primeiro, o Potengi em Macaíba (Ferreiro Torto); segundo, o de Cunhaú em Canguaretama. Em seguida, patrocinaram saques e massacres na Capital, sendo os mais cruéis registrados em 1645, em Cunhaú e Uruaçu, cujas populações foram martirizadas. Daqui, foram expulsos, em 1654.
A invasão holandesa no Rio Grande do Norte, certamente, se deu em retaliação ao afamado Felipe II, Rei da Espanha/Portugal (à época União Ibérica: Portugal sob o domínio da Espanha – 1580/1640) que, devido ao conflito entre a Espanha e a Nederland, havia imposto cruelmente aos Países Baixos (Holanda) o catolicismo e forte barreira comercial ao açúcar brasileiro, que antes o comerciava livremente.
Atrocidades também ali ocorreram. Nem aqui nem lá se justifica essa prática!
Logo depois, acompanhando o curso do Potengi, os portugueses retomaram a exploração no interior do Estado, expandindo as fazendas de gado e a cultura de cana de açúcar. Porém, sofreram resistência dos índios, principalmente aqueles que tinham sido aliados dos holandeses, como os tapuias, os janduís e os cariris.
Com efeito, ocorreram conflitos sangrentos no Rio Grande do Norte, travados entre os colonizadores portugueses e os indígenas, nas margens dos Rios Piranhas/Assu e Apodi/Mossoró, no período de 1680/1720, denominados de Guerra dos Bárbaros, tendo sido os índios derrotados nas primeiras décadas do século XVIII, com a ajuda dos bandeirantes paulistas, liderados por Domingos Jorge Velho.
A tempestade passou, e o sol voltou a brilhar nas águas límpidas do Potengi.
Parte II
No Século XIX, vendo a atividade econômica crescer no interior do Estado com a criação de gado, a produção de açúcar e seus derivados, o Potengi passou a ser o meio de transporte e a ligação entre o interior e a capital: agente promissor do processo de desenvolvimento da atividade comercial.
Mais tarde, as margens do rio, norte e sul, o comércio floresceu, anunciando uma nova era.
Em Natal, no Passo da Pátria, onde as mercadorias chegavam e abasteciam a cidade, foi criada uma feira diária; aos sábados, a maior dos dias, prestigiada por todos, marcou época; foram construídos galpões, comercializando madeira, telhas e tijolos, e pequenos comércios, principalmente bodegas.
Com a atividade comercial iniciando, foi instituída naquele local a Alfândega, e com a primeira linha férrea da cidade passando ali, fazia-se parada obrigatória do trem, o que tornava a região ainda mais movimentada.
Em Macaíba, cidade-polo recebedora das mercadorias, desenvolveu-se sobremaneira, com um comércio pujante de açúcar, couro, algodão, e uma infinidade de produtos vindos do interior do Estado, surgindo influentes comerciantes, sendo o mais expressivo Fabrício Gomes Pedrosa.
A mercadoria chegava ali e era tanto distribuída para Natal, como também para outras regiões do Brasil, através do Porto de Macaíba, situado às margens do afluente Jundiaí, e do Porto dos Guarapes, que ficava à margem do rio que tinha o mesmo nome. Esse porto, segundo o historiador Anderson Tavares de Lyra, foi o centro comercial onde se exportava e importava diretamente da Europa e dos Estados Unidos.
Com a construção da ponte de Igapó: a primeira, a de ferro (1916), o comércio do Passo da Pátria começou a arrefecer e os bares tomaram conta. A beleza do local, com o abandono governamental, foi dando lugar a ocupação desordenada, e não demorou a virar uma favela. Hoje, triste e melancolicamente, o tráfico é quem comanda.
O Potengi foi isso e tudo mais. Foi a pura beleza. As águas do rio cintilando na noite estrelada e a lua no céu passeando, prenunciava, em Natal, um nascer de um novo dia.
O rio inspirou Natal. Faltava a cidade um salto à modernidade. E veio, no início do século XX, pelas mãos do Governador Alberto Maranhão (1900/1904 – 1908/1914).
A restruturação da Av. Tavares de Lyra foi o primeiro passo. Além de impulsionar o comércio local, abriu o horizonte resplandecente do Potengi. Ali, ver o pôr do sol era um espetáculo à parte. Outros passos foram dados. Com seu braço entrando na cidade, foi construída a Praça Augusto Severo, cujo cenário era embelezado pelo rio passando embaixo das pontes, denotando vida e fulgor. Ao seu lado, foi construído o Teatro Carlos Gomos (hoje Alberto Maranhão) e o Grupo Escolar Augusto Severo, o primeiro do Estado, projeto do arquiteto Herculano Ramos.
A Ribeira, símbolo da modernidade urbana, sob a bênção do Potengi, era o pórtico de Natal.
Mas, não parou por aí. Ainda, no rumo da modernidade, foi construída a Avenida Junqueira Aires, ligando a Ribeira à Cidade Alta, projeto de Antônio Polidrelli. A balaustrada, com colunetas, com lampadários e o relógio, e a fonte decorada, tudo feito em ferro fundido pela Fundição Val D’Osne, na França, concluíam a arquitetura local.
Natal, dos anos 20, tinha ares modernos da belle époque, influenciados pela Europa, sob o olhar proeminente do Rio Potengi, sua maior riqueza e inspiração: um boulevard parisiense.
O Potengi, também, fez de seu leito, momentos de prazer e de competição. Foi palco de esportes náuticos, com destaque para o Remo, sempre presente no cenário potiguar. Aqui, na Rua Chile, foram criadas, em 1915, duas grandes agremiações: Centro Náutico Potengi e o Sport Clube Natal. Com isso, os jovens foram se aproximando do rio. A Ribeira atraía animado público para ver os atletas em glamorosas e competitivas regatas.
Mas o rio, por banhar Natal e ter um estuário privilegiado, poderia ter outra finalidade. E teve. Nos anos de 1920 e 1930, o Potengi trouxe a prosperidade. Em seus braços acolheu a aviação civil, sendo ponto de pouso e decolagem dos hidroaviões de companhias internacionais (francesas, inglesas e alemãs), iniciando o comércio aéreo de Natal. No rio, pousaram vários hidroaviões, vindos de Nova Iorque, Buenos Aires e Rio de Janeiro, da empresa Nyrba Air Lines, Pan America Air Lines. Também operavam aqui os aviões de transportes e postagem, através dos alemães, com as empresas Lufthansa e o Syndicato Condor.
A aviação civil e comercial, com apoio do Potengi, era pioneira e divulgada mundialmente, principalmente quando aqui pousou o piloto norte-americano, Charles Lindgergh, “o primeiro a cruzar o oceano atlântico em aeronave em 1927”.
Parte III
Nas décadas de 20 e 30, a Capital do Rio Grande do Norte vivia de expectativa e grandes transformações. A euforia, que tomava conta do natalense, não acabou com a considerada era de ouro. A 2ª Guerra Mundial (1939-1945), apesar de ser um período nefasto na história, para Natal, foi uma esperança.
Natal, à época, era uma cidade pequena, com aproximadamente 50 mil habitantes; entretanto, possuía posição geográfica importante, por ter a menor distância das Américas à África, e, por isso, despertou interesse aos Estados Unidos.
Com a entrada dos Estados Unidos nesse conflito armado, ao lado dos Aliados (Reino Unido, França e União Soviética, contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), em 1941, principalmente em razão do ataque japonês à base naval americana de Pearl Harbor (7/12), não demorou e seu Presidente, Franklin Roosevelt, procurou o do Brasil, Getúlio Vargas, e selaram aliança, em 1942, com o ponto central: Natal teria base militar americana.
Posteriormente, os Presidentes ( EUA e BR) se encontraram em solo potiguar, em 1943, o que ficou denominado de Conferência do Potengi, momento em que o Brasil saiu da neutralidade e tomou partido, enviando tropas para Itália, conhecida como a FEB – Força Expedicionária Brasileira, em 1944.
O governador do Estado à época era Rafael Fernandes Gurjão (1935/1943), a tudo assistiu e a nada se opôs. Presenciou esse momento importante do Brasil em solo potiguar.
Os Estados Unidos construíram, em Natal, a Parnamirim Field . Parnamirim na ocasião era um mero distrito da cidade, só se transformando em município em 1950. Naquela ocasião era a maior base aérea norte-americana em território estrangeiro, com uma média de 200 voos diários.
Aqui, os americanos, também, ajudaram a construir a Base Naval de Natal no Rio Potengi, tendo à frente da missão o Contra-Almirante Ary Parreiras, montando outra base militar, para fornecer apoio logístico aos navios aliados, que operavam no Atlântico Sul durante o conflito mundial, devido à sua privilegiada localização geográfica, assim como auxílio à Parnamirim Field.
Com a chegada dos militares americanos em Natal, em torno de 10.000 soldados, correspondendo a 20% da população (50.000), a vida local mudou.
A influência americana marcou a capital do Rio Grande do Norte. Produtos americanos circulavam na cidade: Coca-Cola, calça jeans, ray-ban, ketchup. A cena cultural ficou em efervescência, a boemia em si, como os cabarés, os cafés, as docerias, as livrarias, a moda, a arte. Praias foram batizadas, como, por exemplo, Miami e a Praia dos Artistas. Artistas eram assim aqui chamados os norte-americanos.
Indiscutivelmente, Natal contribuiu para o sucesso dos Aliados na Segunda Guerra, com o apoio às tropas americanas que se dirigiam daqui à Europa e à África. Daí o apelido, merecidamente, dado à cidade: “Trampolim da Vitória”.
Com a passagem dos americanos em Natal, o Rio Grande do Norte teve um significativo desenvolvimento econômico e o comércio da Capital aumentou sobremaneira, abastecendo-se os soldados.
Os gêneros alimentícios subiram de preço e o setor imobiliário atingiu cifras alarmantes na cidade. O gosto pelo inglês propagou-se e surgiram diversos professores e estudantes interessados no seu aprendizado (Curiozzzo.com).
Mais do que isso, mudaram-se os hábitos locais, tornando a Capital mais aprazível, com ares de cidade grande. A moda foi afetada. As mulheres jovens ficaram mais soltas, mais à vontade. Passaram a usar calças compridas e as saias mais generosas. O jazz e os blues tomaram conta dos bailes.
Todos estavam abertos à mudança, motivados por forte sentimento de liberdade.
Parte IV
Acabada a Segunda Guerra Mundial e passada a euforia, Natal se distancia do Potengi e sobe os morros de Petrópolis e Tirol.
A ideia era que a expansão fosse feita de forma sistematizada e organizada através de um plano de urbanização do Arquiteto grego radicado na Itália, Giácomo Palumbo, contratado pelo prefeito Omar O’Grady, aproveitando o planejamento urbanístico feito por Antônio Polidrelli, construindo uma cidade planejada, com forte influência das cidades americanas.
Todavia, algumas questões governamentais impediram que os idealizadores desse plano completassem a sua implantação; e Natal foi se afastando do Rio Potengi, relegando aquela beleza geográfica ao esquecimento.
Nas grandes cidades mundiais, os rios que as banham são valorizados e a sua urbanização passa pela harmonização entre esses elementos: geográfico e físico, para que se possa desfrutar da beleza do lugar, sem comprometer com isso o seu crescimento.
Como exemplo tem-se o rio Sena, que banha Paris; Rio Tâmisa, que banha Oxford e Londres; o Tibre, que banha Roma. Também não se pode esquecer do rio Douro no Porto e o rio Moldava em Praga.
O rio é um referencial e sua interação com a cidade revela-se importante para o bom desenvolvimento urbano.
Em Natal, isso não aconteceu. O desdém ao rio é visível e gritante. A Avenida Monsenhor Walfredo Gurgel (A
antiga Av. Do Contorno) e o seu entorno são o retrato fúnebre da cidade.
A beleza do Potengi é ostensiva, está no crepúsculo sem barreiras, onde em seus braços o sol adormece; está na placidez das suas águas, na suavidade das suas curvas…
Certamente, foi esse encanto que inspirou o poeta Othoniel Menezes a compor um poema, dizendo assim: Praieira do meu pecado,/Morena flor, não te escondas,/Quero, ao sussurro das ondas/ Do Potengi amado,/Dormir sempre ao teu lado…/Depois de haver dominado/ O mar profundo e bravio,/ À margem verde do rio/Serei teu pescador/Ó pérola do amor! – composição essa chamada de “Serenata do Pescador”, hino da cidade do Natal.
Hoje, a boniteza do Potengi está oculta, ofuscada pelas construções da cidade e pela distância imposta; o seu acesso dificultado pela violência local; só se pode apreciá-la, agora, do alto, do alto dos arranha-céus, privilégio de poucos.
Isso tem que mudar.
Revitalizar a Ribeira e a Cidade Alta, assim como reurbanizar o Passo da Pátria são o caminho a ser trilhado, com o propósito de proporcionar a modernização urbana do local.
Para o degredo total, no Rio Potengi, que abria Natal para o mundo, foi nele imposto uma barreira: a ponte Newton Navarro. Apesar desse elemento físico ser garboso e ter contribuído para a ligação da Zona Norte à Zona Sul, fomentando o desenvolvimento da cidade, limita a entrada de navios de grande porte, diminuindo o fluxo do Porto de Natal.
O Rio Potengi não deveria ser uma porta entreaberta de Natal!
Fontes:
– Confins – n⁰ 23 – 2015 – Rubenilson B. Teixeira
– Chaguinha Net (Flickr)
– Fundação Rampa
-Tok de História
-Fatos e Fotos de Natal Antiga
– Pesquisas em livro, revista, jornal e Internet
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