O sertão que conheci primeiro: lembranças
Data: 20/05/2023
O sertão é um exemplo de como a beleza se revela em ambientes áridos e inóspitos.
A beleza do sertão é um convite à evocação de uma filosofia que nos ensina a valorizar a simplicidade, a solidariedade e a importância da preservação do meio ambiente.
O sertão que conheci primeiro foi o da Fazenda Amazonas. Propriedade fincada nos campos de Janduís/RN, a 286 quilômetros de Natal. Terra árida, com pouca chuva, propensa para lavoura de algodão e, com pastagem natural, apta para criação de gado.
A casa sede – com paredes largas, pé direito alto, telhado em duas águas, com alpendre grande, com quatro quartos e um sótão – foi construída no estilo rural do sertão, pura arquitetura nordestina, há mais de 100 anos. Ao seu redor têm casas de morador, estábulo, cocheira e armazéns. Em frente, fica um imenso e belo açude.
Essa fazenda foi de Joaquim da Silva Saldanha (1872/1936), o lendário Quincas, um dos mais importantes fazendeiros do Oeste Potiguar do século XX, cuja valentia era conhecida na região. Para entrar ali, só pedindo bênção ao Coronel. Nem Lampião se atreveu a tanto; ao contrário, antes de invadir Mossoró (1927) tentou saquear a cidade de Caraúbas e as fazendas da redondeza, mas o Coronel Quincas Saldanha e seus jagunços botaram para correr o Rei do Cangaço.
Com a morte de Quincas, a fazenda passou para seu filho Francisco de Paula Saldanha, chamado de Paulo. Atualmente, pertence ao seu neto, José de Paula Saldanha, conhecido por aquelas bandas por seu Zito. Hoje, com mais de 80 anos, nascido na Fazenda Amazonas, é uma prova viva de que o sertão, com amor e perseverança, pode dar certo. Com ele guarda o mistério do lugar e as estórias inebriantes.
A Fazenda Amazonas, arrodeada de mistérios e costumes, no início da década de 80 do século passado, despertava o interesse da meninada de Morro Branco, bairro onde seu Zito tinha também residência.
Pelas mãos de seu Zito Saldanha, conheci o sertão, com todo seu encanto. A primeira vez que estive ali foi nas férias do mês de julho. Nessa viagem, erámos, além de seu Zito, os filhos dele e mais uns cinco meninos.
Para chegar na Fazenda era uma aventura, literalmente. Levávamos quase quatro horas, na carroceria de uma camionete. Percorríamos uma parte em estrada asfaltada e outra parte, a mais dolorida, de estrada de barro.
Antes de seguir viagem, seu Zito nos inundava de estória de assombração, de seres reais: cangaceiros, e de irreais: alma penada, caipora etc. Ao sair de Natal, era só empolgação. Quando pegávamos a estrada de barro, geralmente à noite, o medo tomava conta de toda meninada. Cada porteira para abrir, uma parada, um de nós descia e o medo cobria. Tarefa essa exercida sempre por nós, os convidados. Os filhos do fazendeiro não desempenhavam esse trabalho, e viajavam com ele na boleia da camionete, no puro conforto.
Essas eram as regras do anfitrião, rusticidade apenas, e todos a elas se submetiam, até porque ninguém era doido de não cumprir. Naquele fim de mundo, sem telefone, não se tinha a quem socorrer! Birra, jamais.
A acomodação da fazenda era rústica, não tinha energia elétrica, a energia era movida por motor a diesel; a comida era farta; e água de beber era escassa, vinha de Natal e, quando acabava, de Janduís. Mas, a nossa alegria era imensa e a felicidade de estar ali compensava tudo.
O seu Zito Saldanha era a figura central e a atração. Sem ele a viagem perdia o sentido. A sua hospitalidade era diversão à parte. Na hora da alimentação, o anfitrião sentava à mesa, exatamente no centro, e os convidados ao seu redor. Quem primeiro se servia era ele e a ele ninguém poderia pedir nada, até porque não passava nenhum prato, e, quando insistíamos, resmungava.
– Desse jeito, não tem condições de eu comer… Assim, eu não acabo a minha comida.
Certa vez, um principiante e desatento convidado, com fome talvez, sentou-se rápido à mesa, e sorrateiramente foi logo espetando uma coxa de galinha. Percebendo a artimanha, o anfitrião disse, forte e alto.
– Leão, vá na titela que a coxa é minha!
Com essa e outras, a turma se divertia e caía na risada.
A dormida era de rede. Todo mundo no alpendre. Armadas ardilosamente sempre na pontinha do armador, quem não conferisse caía. Era assim: brincadeira o tempo todo.
O açude é majestoso, contracena com a vegetação local, destacando-se o xique-xique, formando o belíssimo cenário. Lá, todos nós nos banhávamos, nadávamos, pulávamos da parede da barragem. Era pura diversão.
No sertão, o tempo parece passar mais devagar, e a vida é saboreada em cada momento. É a filosofia do aproveitar o presente, sabendo que cada momento é valioso e fugaz.
Gado à vista, cavalos para todo lado. Os meninos da capital, neles, só andavam, desajeitados sempre; os mais afoitos e que tinham mais intimidades com o campo participavam de vaquejada. Esporte originariamente iniciado no sertão, em que montados a cavalo, os vaqueiros corriam atrás do boi para derrubá-lo no chão, a fim de passar remédio ou vaciná-lo. Hoje, a vaquejada virou um esporte e uma atração festiva, com regras específicas.
No final de semana dessa nossa estada, teve uma vaquejada. Um dos convidados, com antecedência, mandou seus cavalos com seu vaqueiro de confiança. Na viagem, por descuido do vaqueiro, a sela de seu patrão caiu e perdeu-se. O vaqueiro com medo, por se tratar de um fazendeiro brabo, procurou seu Zito, para saber o que fazer.
Seu Zito, muito sério, se dirigiu ao vaqueiro e disse.
– Só fazendo uma mandinga.
O vaqueiro amedrontado e assustado com a situação, olhando para seu Zito, falou.
– Qual é, seu Zito ?
– Você vai dormir hoje, peado pelos pés e com um chocalho no pescoço. Aí você sonhará onde está a sela e eu mando buscá-la.
– É simples assim ?
– É.
À noite, todos nós fomos jantar, inclusive o vaqueiro. Com mesa farta: leite, coalhada, cuscuz, batata doce, tapioca, ovo, queijo (de manteiga e de coalho) e carne de sol na nata, ele comeu de tudo. Só a coalhada comeu várias vezes, só que, neste prato, foi batizado com laxante do brabo.
Depois do jantar fomos dormir. Lá pela madrugada, só se escutava o badalo do chocalho, pra cima e pra baixo. E a risada solta.
E no outro dia, seu Zito pergunta ao vaqueiro.
– Sonhou com a sela ?
E o vaqueiro, abatido e com olheira, responde.
– Sonhar, sonhar, não sonhei, mas tive uma diarreia daquela, passei a noite toda me obrando.
Há um sertão que resgata vários outros, que amplia a lembrança, alarga o olhar, aquece o coração como uma cantiga antiga, relicário de lembranças (Marcus Lontra).
A filosofia sertaneja é a dos que aprendem a valorizar os pequenos detalhes da vida e a encontrar beleza onde outros veem apenas aridez. É a filosofia das pessoas que se unem na adversidade e se fortalecem na luta pela sobrevivência.
Fotos:
Paulo Saldanha
Débora Saldanha
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