O processo civil e o uso indevido de chamar o feito à ordem

Nélio Silveira Dias Júnior

Advogado

Aquele que opera o direito se depara cotidianamente nos processos civis com a expressão: “chamo o feito à ordem”, utilizada pelos juízes, corretamente, quando assim procedem sem deturpar o instituto para o qual foi instituído.

Chamar o feito à ordem, na verdade, é o procedimento usado pelo juiz para corrigir irregularidade durante o rito processual, prezando pela organização do processo, a fim de que a  tutela jurisdicional seja prestada sem vício, com vistas ao legítimo julgamento de mérito.

Afinal, cabe ao juiz dirigir o processo, incumbindo-lhe, além de outros deveres,  “determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais” (CPC, art. 139).

Mas, nem sempre esse mecanismo é utilizado para saneamento e organização do processo. Agora, também, é usado por alguns juízes como uma maneira de rever sua decisão,  com ou sem provocação das partes, como fosse correto modificá-la sem ser pela via recursal.

Essa “inovação” processual viralizou no Poder Judiciário.

Isso não é possível e tem que acabar, frente à ordem processual vigente.

Ao ser decidida uma questão dentro do processo, sem por fim a ele, não pode outro juiz ou, até mesmo, ele próprio, posteriormente, utilizando-se do chamamento do “feito à ordem”, cancelar ou reformar a decisão e proferir outra, pois a primeira está acobertada pela preclusão pro judicato.

Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide (CPC, art. 505, caput).

A preclusão serve, sobretudo, para efetivar o princípio da boa-fé, pois protege a confiança na estabilidade da relação processual.[1] 

Situações estabilizadas devem assim permanecer; do contrário, ficaria em perene situação de instabilidade, comprometendo a segurança jurídica.

Aí se teria, em vez de processo, retrocesso!

Chamar o feito à ordem, para decidir de ofício questão, sob as mesmas condições de fato, já decidida anteriormente, não encontra respaldo legal, ainda que se tratasse de matéria de ordem pública.

 Uma coisa é o juiz decidir matéria de ordem pública, suscetível de ser alegada a qualquer momento processual, inclusive conhecida de ofício, que deveria ter decidido anteriormente, mas não o fez; a outra coisa é rever a sua própria decisão, chamando o feito à ordem, mesmo que seja para corrigir erro, considerado grosseiro, o que não é permitido.

Só é admitido o juiz chamar o feito à ordem, quando for para sanear e organizar o processo, de preferência nos casos estabelecidos no CPC (art. 357), por vezes ultrapassadas essa fase sem cumpri-la; ou, até mesmo, para decidir uma gravíssima questão de ordem pública, ainda não decidida, nos casos permitidos por lei, tudo para se evitar uma nulidade processual, em prol de um bom e regular prosseguimento do feito.

Não pode o julgador chamar o feito à ordem para decidir novamente questão anteriormente decidida, ao seu bel prazer, porque, simplesmente, passou a entender, em determinado momento, juridicamente diferente; ou, porque, assumiu a jurisdição do processo, e não concorda com o posicionamento do juiz anterior.

Não; não pode.

Diferente é o caso de decisão de tutela provisória de urgência que conserva a sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada, (CPC, art. 296), diante de sua natureza precária, consequência de ser fundada em cognição sumária.

Com exceção da tutela provisória de urgência, ao decidir determinada matéria, o juiz exaure aquela prestação jurisdicional, só podendo alterá-la para corrigir inexatidões materiais, retificar erros de cálculos ou para acolher embargos declaratórios (CPC, art. 494).

Incorre em error in procedendo,  portanto, o juiz que torna sem efeito a primeira decisão, fazendo prevalecer a segunda, porquanto quando proferida a última já havia operado a preclusão pro judicato.

Assim, é nula a decisão pela qual o Juízo singular, a pretexto de chamar o feito à ordem, altera decisão anterior, fora das hipóteses legais, devendo ser corrigida pelo meio recursal cabível (apelação ou agravo de instrumento).


[1] Didier Jr,  Fredie. Preclusão e decisão interlocutória. Publicado in www. migalhas.com.br

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