Nas aposentadorias decorrentes de cargos acumuláveis, a incidência do teto constitucional deve ser aplicada para cada um isoladamente.

Nélio Silveira Dias Júnior

É possível a percepção de mais de uma aposentadoria a conta do regime da previdência, na ordem constitucional vigente, desde que decorrentes dos cargos acumuláveis na forma da Constituição da República (art. 40, § 6º).
Assim, pode ocorrer, havendo compatibilidade de horários, a acumulação dos seguintes cargos: a) dois cargos de professor; b) um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas (art. 37, XVI).
Além dos casos relacionados acima, a Constituição admite a acumulação dos cargos quando um é de professor e o outro é de juiz (art. 95, parágrafo único, inciso I) ou de membro do Ministério Público ( art. 128, § 5º, inciso II, alínea “d”).
Por outro lado, não obstante a lucidez do preceito constitucional, a própria Constituição Federal mitigou essa acumulação, ao dizer que, nas duas situações apresentadas, deve ser observado o disposto no art. 37, XI, ou seja, a aplicação do abate-teto (art. 37, XVI).
E repete a sua intenção, de forma mais contundente, quando trata da inatividade, ao dispor em seu art. 40, § 11, que se deve aplicar o limite fixado no art. 37, XI à soma total dos proventos de aposentadorias, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos.
Esse dispositivo é bastante problemático e gera situações de verdadeira perplexidade, porque a superação do teto nem mesmo é admitida quando resultante de acúmulo de cargos constitucionalmente permitido .
Apesar da clareza literal do §11 do art. 40 da Constituição, não se pode se conformar com essa situação, nem, muito menos, aplicar o preceito legal na sua forma gramatical.
Se for aplicado o dispositivo com base na sua literalidade, chegar-se-ia a admitir que, se um vínculo for o equivalente ao teto, o outro seria exercido sem remuneração, o que é inconcebível, diante da sistemática constitucional vigente, uma vez que é inadmissível trabalho absolutamente gratuito.
Simplesmente o Estado não pode dar com uma das mãos e retirar com a outra; não pode assentar como admissível a acumulação e, na contramão desta, afastar a contrapartida que lhe é natural, quer no todo, – quando, então, se passaria a ter prestação de serviço gratuito -, quer em parte, mitigando-se o que devido .
Tal advertência é feita, com propriedade, pelo prof. ALEXANDRE DE MORAIS, ao tratar de infeliz alteração constitucional, uma vez que acabaria por penalizar o servidor público que acumula dois cargos constitucionalmente permitidos. O absurdo da nova redação do dispositivo constitucional poderia acarretar a estranha situação de o servidor público nada ou pouco receber pelo exercício do segundo cargo .
Daí haver defendido o constitucionalista que, por respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, essa norma deve ser rapidamente revogada ou, interpretada no sentido de estabelecimento de teto diferenciado para os servidores públicos que puderem, constitucionalmente, acumular cargos públicos, de maneira que não se consagre constitucionalmente a possibilidade de o Poder Público poder exigir o exercício de cargos, funções e empregos sem a devida remuneração .
Foi por essa razão que o Ministro Marco Aurélio, relator do Proc. Administrativo
nº 319.269-STF, instado a decidir sobre a inconstitucionalidade da incidência do teto salarial nas hipóteses de acumulação remunerada constitucionalmente permitida, manifestou-se, na Sessão Administrativa, pela inconstitucionalidade da expressão “percebidos cumulativamente ou não”, contida no art. 1º da Emenda Constitucional nº. 41/03, que deu nova redação ao inciso XI, do art. 37, da Constituição Federal.
Dessa forma, entendeu o Excelso Pretório que o teto salarial deva ser analisado individualmente, para cada uma das remunerações permitidas constitucionalmente a acumulação.
No âmbito do Poder Judiciário, para elidir a distorção, o Conselho Nacional da Justiça– CNJ excluiu do teto remuneratório a remuneração ou o provento de magistrado decorrente do exercício do magistério, nos termos do art. 95, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal (Resolução nº. 13, de 21/3/06, art. 8º, II, “a”).
De igual modo, aconteceu com os membros do Ministério Público, uma vez que o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução nº 009/2006 nesse mesmo sentido (art. 7º, inciso IV).
Assim, não restam dúvidas que, tanto para os magistrados, quanto para os membros do Ministério Público, o exercício cumulativo de suas atribuições com uma de magistério não impede a percepção das retribuições correspondentes aos dois cargos, ainda que sua soma supere o teto.
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região vem decidindo dessa forma para todos os casos de acumulação permitida, no sentido de que “como os benefícios de aposentadorias percebidos pelo Autor são legalmente cumuláveis, os mesmos devem ser considerados individualmente para a aplicação do limite estipulado pela CF, para o teto remuneratório dos servidores públicos.”
Se não for assim, instaurar-se-ia uma desordem no sistema constitucional.
Veja-se, por exemplo, o caso de um juiz de primeira entrância que exerce o cargo de magistério. No primeiro ano de suas atividades acumuladas, não sofreria alteração, posto que os seus subsídios somados com a sua remuneração não ultrapassariam o teto constitucional. Mas, ao progredir nas duas carreiras, na de magistério com realização de mestrado e doutorado, e, na magistratura, passando a ser juiz de terceira entrância, após trinta e cinco anos de trabalho e contribuição, ao se aposentar, teria que perceber apenas os proventos de aposentaria do cargo de juiz ou esses proventos e parte do de magistério, porque a sua soma ultrapassaria o teto constitucional.
Portanto, a solução aqui é interpretar os dispositivos constitucionais (art. 40, § 6º e § 11 e art. 37, XI) de acordo com o princípio da concordância prática, no sentido de buscar a redução proporcional de cada um dos bens em conflito, de modo que não seja atingido o núcleo de nenhum dos direitos protegidos, harmonizando o sistema.

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