Na estrada: causos e percalços
Data: 21/10/2023
Em uma remota manhã, acordei cedo e vesti o terno, para iniciar mais um dia de trabalho; dessa vez, para participar de uma audiência judicial em Macau, cidade geograficamente exuberante, da região costeira potiguar, cercada pelo Oceano Atlântico.
Peguei a “Rota dos Ventos” (BR 406) e logo deixei para trás Ceará-Mirim e Taipu e a sua bela vista: canavial, pastagem, gado solto; estrada agradável com descidas íngremes, com vale à vista. Não demorou, passei à esquerda por Poço Branco. Daí pra frente uma reta. Mais adiante, cruzei com João Câmara, cidade economicamente importante para Região do Mato Grande, produtora de agave, que outrora impulsionou a economia potiguar (Fazenda Zabelê).
Viagem encantadora, principalmente de manhã cedo.
Pensando nas vicissitudes da região e curtindo a agradável paisagem, prossegui na viagem, dirigindo devagar e atento. Não demorou e comecei a perceber uma enorme quantidade de jumentos: solitários, em algumas vezes, e famintos e maltratados, nos aceiros da estrada, e, até mesmo, no acostamento, dando a impressão de abandono.
Aí tudo mudou: a alegria deu lugar a tristeza. Não demorou e a reflexão tomou conta de mim. Aqueles animais, conhecidos por sua robustez, amplamente utilizados em trabalhos árduos, transportando cargas e pessoas em terrenos difíceis, agora negligenciados nas estradas e abandonados ao deus-dará, entregues à própria sorte.
Isso não parecia ser justo nem espelhava gratidão.
Os jumentos desempenharam um papel histórico importante no desenvolvimento do Nordeste do Brasil, e é essencial que sejam valorizados e protegidos.
Cheguei em Macau. Antes de iniciar a audiência, impressionado com a situação, externei a minha preocupação. O Juiz, sensível nas questões sociais e de animais, disse:
– A situação é preocupante. Já entrei em contato com a Polícia Rodoviária Federal para recolher os jumentos nas rodovias, a fim de evitar acidentes, e falei com as organizações defensoras desses animais, que merecem apoio e aplauso, para resgate e proteção.
Terminei o meu trabalho naquele dia e voltei para Natal, já quase escurecendo. Preocupado agora com os jumentos no meio da estrada, para não causar um acidente.
“O perigo mora ao lado”, agora na estrada!
À noite, prossegui de estrada afora, tendo já passado por Jandaíra e Baixa do Meio, quando um carro cruzou por mim com o farol alto. Logo em seguida me deparei com um jumento na minha frente. Diante do susto e da dimensão do problema, pensei que era um “elefante”, pela forma que se apresentou para mim. Não tive o que fazer, sem dar tempo sequer de frear ou de desviar, bati nele de frente, com 80 km. O pobre do jumento subiu e pegou no para-brisa, depois deslizou no teto do carro e foi arremessado no acostamento.
Totalmente desnorteado, sem saber ainda se eu estava vivo, saí dirigindo com o carro pouco metros, sem farol e qualquer visibilidade, até parar em um lugarejo. Muito assustado, saltei do carro. Uma meninada correu para junto de mim, perguntado, alvoroçadamente, o que tinha ocorrido:
– Moço, o que foi que aconteceu ?
– Bati violentamente no jumento e não sei nem se estou ferido.
A solidariedade foi instantânea. A turma saiu correndo, numa algazarra danada, para ver o jumento!
Nada de errado. Talvez a atração ali fosse melhor.
E eu fiquei, sozinho, totalmente abalado, me tocando ainda, para saber se tinha acontecido alguma coisa grave comigo, o que depois de alguns minutos, percebi que não.
De repente veio um rapaz, olhando furtivamente os estragos do carro, que não serviu mais para nada (perda total), e me disse:
– O moço teve sorte, porque se o jumento tivesse entrado no para-brisa, nem a sua alma sobreviveria.
Concordei com ele, já quase desfalecendo, diante da sua abordagem, talvez inoportuna naquele instante.
Sem comunicação, celular ali não funcionava, perguntei ao rapaz:
– Tem aqui um orelhão (velho telefone público) ?
– Sim tem. É bem ali, disse o rapaz.
Então lhe perguntei se poderia me levar até lá. Respondeu que sim. Tirei o paletó, a gravata e arregacei as mangas da camisa, e comecei a andar. E não chegava nunca. Então perguntei se estava perto.
– Sim. É bem ali… Respondeu o rapaz.
Esse “bem ali” – muito característico do interior, para identificar algo, que era para ser perto, mas, na verdade, é longe -, até que fim chegou, depois de 20 minutos de caminhada, no barro e desviando de uma poça d’água, aqui e acolá.
Aliviado, cheguei no orelhão. Aí perguntei ao rapaz:
– Onde eu compro um cartão telefônico ?
– Lá na bodega do Zé, que fica vizinho onde o moço deixou o carro.
Putz ! Putz! Putz!
Rapaz, por que você não me avisou quando estávamos ali, para eu já adquirir o cartão telefônico ?
– Porque o senhor não me perguntou… Só queria saber onde ficava o orelhão…
Ufa!
A essa altura, mais aborrecido do que acidentado, me sentei numa calçada e fiquei aguardando alguém vir telefonar e me emprestar o cartão. Não demorou muito. Isso aconteceu e eu liguei para o meu seguro e tudo foi resolvido. Logo depois, cheguei em casa: são e salvo.