Coisa julgada: sua aplicabilidade frente à alteração posterior da jurisprudência

Nélio Silveira Dias Júnior (Advogado)

Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso (CPC, art. 502).

Por sua vez essa coisa julgada está protegida pela Constituição como direito e garantia fundamental, em cláusula constitucional pétrea (art. 5º, XXXVI).

Nos limites fixados para sua formação e persistência de seus efeitos pela Lei, a coisa julgada não pode ser desrespeitada, posto o impedir a Constituição Federal de 1988.

Os limites de formação da coisa julgada estão na impossibilidade de recurso contra a decisão que a gerou (CPC, art. 502). E os limites de seus efeitos no tempo são perpétuos, salvo se “tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença.” (CPC, art. 505, I).

Certa ou errada frente à Constituição Federal e a jurisprudência, a decisão transitada em julgado deve ser respeitada, ainda mais se quem poderia ter recorrido não o fez. As consequências da incúria não podem prejudicar o direito individual de quem tem garantia constitucional instituída em seu favor.

Inconstitucional e ilegal é,  depois de um tempo, curto ou longo, desconstituir a coisa julgada a pretexto de formada contra lei ou, até mesmo, contra disposições da Constituição da República, e de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.

A garantia da coisa julgada se inscreve na Constituição da República e nas leis precisamente para fazer “preponderar a segurança jurídica das situações sociais em detrimento da possibilidade de sua permanente discussão à vista da tendencial possibilidade de seu aperfeiçoamento”. [1]

Os melhores propósitos, pois, não bastam para inutilizar a coisa julgada, que tem âncora na preservação da segurança jurídica, especialmente quando em jogo relações entre o indivíduo e o Poder.

Não fosse assim, seria inócua a decisão já no dia seguinte, pois não teria instituído uma garantia. Ficaria o jurisdicionado a mercê de transformações futuras, gerando insegurança incalculável.

O Supremo Tribunal Federal, em decisão com repercussão geral (Tema 733), protegeu essa coisa julgada, mesmo em face de decisões que contrariem julgamentos seus, que hajam declarado a inconstitucionalidade das leis que lhes serviram de suporte.

 No Tema 733, a Excelsa Corte afirmou que  “a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495)”.

Proclamou, pois, o Supremo Tribunal que a inconstitucionalidade da Lei em que se baseou a decisão judicial, e por força de cujo trânsito em julgado se formou coisa julgada material, não é automática, dependendo da oportuna interposição dos recursos ou outros meios processuais adequados.

Vale isso dizer que a coisa julgada, à míngua de recursos oportunos quanto a  ponto específico, igualmente se opera.

Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto sobre relações jurídicas de trato continuado.” [2]

Para  ocorrer  a possibilidade  de  se  afastar a coisa julgada nesse ponto é preciso verificar a própria natureza da relação jurídica que lhe deu origem.

Se essa natureza original é, ela própria, permanente e se sucede no tempo, a sentença transitada em julgado não se pode modificar se permanecerem e se sucederem as mesmas condições, de direito e de fato, que lhe serviram de fundamento.

É que a sentença incidente sobre relações de trato sucessivo e continuado obviamente tem de ter eficácia para o futuro, pena de inutilidade, mas estará sujeita a alterações na mesma medida em que se alterarem aquelas condições de direito e de fato que lhe deram origem.

Daí decidir o Supremo Tribunal que “as vantagens remuneratórias pagas aos servidores se inserem no âmbito de uma relação jurídica continuativa, e, assim, a sentença referente a esta relação produz seus efeitos enquanto subsistir a situação fática e jurídica que lhe deu causa”.[3]

Se a situação fática e jurídica subsiste, subsiste também a eficácia da coisa julgada.

Não se pode perder de vista, enfim, que a coisa julgada é um princípio fundamental de um ordenamento jurídico, visando a estabilidade das relações sociais. Busca garantir a segurança jurídica e a confiança dos jurisdicionado no sistema judiciário.

Preservar a coisa julgada é essencial para o Estado Democrático de Direito.  Relativizá-la  em casos específicos pode comprometê-lo, ainda que para preservar outros valores fundamentais, como a justiça e a igualdade.


[1] MARINONI, Luiz Guilherme, Novo Curso de Processo Civil, vol. 2, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, pg. 463.

[2] STF, RE 730462, Ministro Teori Zavascki, Pleno, j. 28/5/2015, DJe 6/9/2015.

[3] STF, MS 33561, Ministro Luiz Fux, 1ª T., j. 14/10/16, DJe 4/11/16.

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