A capacidade civil da pessoa natural e a nova ordem legal frente ao deficiente.

Nélio Silveira Dias Júnior

 

Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Todavia, a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida (Código Civil, arts. 1o e 2º).

Com a entrada em vigor da Lei nº. 13.146/2015, a capacidade da pessoa natural (física) sofreu significativa e importante alteração.

Agora, são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 anos (CC, art. 3º).

Essa incapacidade significa ausência de aptidão de o menor de 16 anos praticar pessoalmente atos da vida civil, a qual deve ser suprida pelos pais, a quem cabe,  para tal fim, representá-lo, uma vez que, enquanto menor, está sujeito ao poder familiar e o seu pleno exercício compete a eles, os pais, independentemente da sua situação conjugal (CC, arts. 1.631 e 1.634).

Na ausência dos pais ou, em caso deles decaírem do poder familiar, os menores são postos em tutela e serão representados por tutores (CC, art. 1.728).

Por outro lado, são relativamente incapazes a certos atos ou à maneira de os exercer:  os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais e os viciados em tóxico;   aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; e os pródigos (CC, art. 4º).

O suprimento da incapacidade relativa dá-se por meio de assistência. Diferentemente dos absolutamente incapazes, o relativamente incapaz pratica o ato jurídico juntamente com seu assistente (pais, tutor ou curador), sob pena de anulabilidade.[1]

Para que ocorra a assistência, os relativamente incapazes sujeitam-se à curatela. Na sentença que decretar a interdição, o juiz nomeará curador e fixará os limites da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito (CC, arts. 1.767 e 1.755, I).

Com a nova disciplina legal,  foi alterada a situação jurídica dos deficientes.

É considerada pessoa com deficiência, segundo a Lei n°. 13.146/2015, aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 2º).

Assim, a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

Por sua vez, PABLO STOLZE defende que a pessoa com deficiência não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz. [2]

Entretanto, quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela (Lei 13.146/201, art. 84).

A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.

Observe-se que a lei, quando definiu a curatela, tratou-a como medida extraordinária, e não uma medida especial, o que demonstra a sua excepcionalidade, de modo que é assim que deve ser aplicada para pessoa com deficiência.

A curatela específica temporária afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. A definição da curatela da pessoa com deficiência não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (Lei 13.146/201, art. 85).

O objetivo do legislador, ao criar o Estatuto da pessoa com deficiência, foi o de retirar o estigma do deficiente de “incapaz”, para promover a sua inclusão social e profissional, sem amarras, assegurando-lhe cidadania plena, em pé de igualdade com as demais pessoas, em respeito ao princípio da dignidade da pessoal humana, previsto na Constituição Federal (art. 1º, III).

PAULO LÔBO esclareceu, ainda, que a capacidade legal da pessoa com deficiência não se confunde com a capacidade civil, nem com as hipóteses da incapacidade absoluta e relativa, estas especificadas nos arts. 3º e 4º do Código Civil. [3]

Na verdade, são duas modalidades de capacidade jurídica que transitam paralelamente, sem se confundirem: a capacidade civil geral, prevista no Código Civil, e a capacidade geral, prevista no Estatuto da Pessoa com Deficiência. A pessoa com deficiência não é absolutamente incapaz nem relativamente incapaz. É dotada de capacidade legal irrestrita para os atos jurídicos não patrimoniais e de capacidade legal restrita para os atos jurídicos patrimoniais, para os quais fica sujeita a curatela temporária e específica, sem interdição, ou a tomada de decisão apoiada.[4]

Por fim, a nova ordem legal estabeleceu outro instituto à disposição da pessoa com deficiência: a tomada de decisão apoiada,  como alternativa à curatela específica, para apoiá-la na realização de negócio jurídico de natureza patrimonial, sem comprometer a sua capacidade civil.

A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade (Código Civil, art. 1.783-A). Isso significa dizer que esse instituto depende de aprovação judicial e de intervenção do Ministério Público.

Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar  (Código Civil, art. 1.783-A, § 1º).

Para PABLO STOLZE, a nova lei veio em boa hora, ao conferir um tratamento mais digno às pessoas com deficiência. Verdadeira reconstrução valorativa na tradicional tessitura do sistema jurídico brasileiro da incapacidade civil. [5]

Em outras palavras, embora a nova sistemática possa causar certo temor ao firmar que aquele que sofre de transtorno mental pode manifestar sua vontade juridicamente, o enfrentamento é necessário para o ideal convívio numa sociedade justa, livre e solidária.[6]

[1] Idem, ibidem, págs. 161/162

[2] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil  – Parte Geral. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, pág. 149.

[3] LÔBO, Paulo. Direito Civil – Volume 5: família. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pág. 434.

[4] Idem, ibidem.

[5] Pablo Stolze Gagliano, pág. 152.

[6] TJSP – Apelação 1005936-93.2017.8.26.0292 – 10ª Câmara de Direito Privado Relator – Relator Des. Coelho Mendes –  Data do Julgamento: 14/08/2018.

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