ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS DE PROCESSO PENAL DESTACADOS POR CESARE BECCARIA, NA SUA OBRA “DOS DELITOS E DAS PENAS”, À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

NÉLIO SILVEIRA DIAS JÚNIOR

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Desenvolvimento – 3. Conclusão – 4. Referência bibliográfica.

1. Introdução

Visa o presente ensaio analisar de forma comparativa os princípios de processo penal relacionados por Cesare Beccaria na sua obra “Dos Delitos e Das Penas” com os assinalados na Constituição Federal de 1988, trazendo elementos informativos e críticos a respeitos dos temas relevantes.

O livro “Dos Delitos e Das Penas” é, de certo modo, a filosofia francesa aplicada à legislação penal da época. Torna-se o arauto do protesto público contra os julgamentos secretos, o juramento imposto ao acusado, a tortura, o confisco, a pena infamante, a delação, a desigualdade diante da sanção e a atrocidade do suplício1.

Beccaria proclamou com desassombro, pela primeira vez, o princípio da igualdade perante a lei. Estabeleceu limites entre a justiça divida e a justiça humana, entre o pecado e o crime. Condenou o pseudodireito de vingança, tomando por base o jus puniendi e a utilidade social. Considerou sem sentido a pena de morte e verberou com veemência a desproporcionalidade entre a pena e o delito, assim como a separação do Poder Judiciário do Poder Legislativo2.

Tendo conhecido as agruras do cárcere, para onde foi enviado por injustiça interferência paterna, logo ao sair se insurgiu Beccaria contra as injustiças dos processos penais em voga. Cesare Beccaria legou ao mundo o seu pequeno grande livro “Dos Delitos e Das Penas”, obra notável, cujo remate, apresentado no teorema final, serve, ainda hoje, de assunto de meditação

e análise dos criminalistas3.

É inestimável a contribuição de Cesare Beccaria para a elaborada moderna ciência do direito penal. Por outro lado, não deixa de ser significante essa obra, embora em menor intensidade, para com o processo penal.

É sobre esse último aspecto que tratará o presente ensaio. Assinalaremos, portanto, na sua obra toda passagem que fala ou tenha alguma semelhança para com o direito processual penal constitucional. Em seguida, identificaremos igual preceito na Constituição Federal de 1988. Por fim, comentaremos a similitude dos institutos processuais, destacando os seus avanços e os seus retrocessos, mostrando, com relevo, a sua aplicabilidade no nosso ordenamento jurídico.

A preocupação do trabalho não é fazer uma obra doutrinária, mas sim tentar relacionar a idéia de o pensador do Século XVIII, suas promessas, suas conquistas, em torno dos rumos constitucionais do novo processo penal.

2. Desenvolvimento

Ao examinarmos a obra: “Dos Delitos e Das Penas”, notamos a preocupação de Cesare Beccaria com a proporção entre os delitos e as penas. Daí ter afirmado que:

deve haver, pois, proporção entre os delitos e as penas” (pág. 37).

E mais adiante disse que:

Se a pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior, se disso resultar maior vantagem”(pág. 39).

Encontramos no Texto Fundamental (Art. 5º, inciso XLVI) reflexo desse postulado, sob a denominação de princípio da individualização da pena, que assim dispõe:

A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa;    e) suspensão ou interdição de direitos.

Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada e de aplicação concreta diferida, porque é a lei que vai oferecer ao juiz os elementos subjetivos e objetivos da aplicação individualizada da pena, da aplicação da pena em função do caso concreto. Mas não se trata propriamente de norma constitucional programática, como a doutrina penal costuma dizer. A individualização é uma garantia constitucional inafastável. A lei já existe, mas se não existisse nem por isso estaria o juiz exonerado de fazer justiça concreta, dando a cada réu sob seu julgamento o que lhe cabe em razão das circunstâncias do crime, sua personalidade, etc4.

O fundamento da individualização da pena está no princípio de justiça, segundo o qual se deve distribuir a cada um o que lhe cabe, de acordo com as circunstâncias do seu agir5.

Do mandamento constitucional se extrai que a reprimenda, para cumprir adequadamente a sua função (retribuição, prevenção e ressocialização), deve ajustar-se de acordo com a relevância do bem jurídico tutelado, sem se desconsiderar as condições pessoais do delinqüente6.

O postulado em estudo deve ser observado em três momentos: o legislativo, quando da cominação em abstrato da pena; o judicial, quando da sentença; e o executório, quando da execução da pena imposta7.

Recentemente o STF declarou inconstitucional o § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, por entender que o regime integral fechado (vedando a progressão) afronta o direito fundamental à individualização da pena, desconsiderando as particularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social e os esforços aplicados com vistas à ressocialização, afetando, desse modo, o núcleo essencial desse direito – limite ao qual a atuação do legislador estaria submetida – tornando-se inócua a garantia constitucional8.

Em outra passagem da sua obra, Cesare Beccaria, preocupado com a instrução do processo, uma vez que à época para se conseguir a confissão torturava-se o réu, denunciou que:

Crueldade, consagrada pelo uso, na maioria das nações, é a tortura do réu durante a instrução do processo, ou para forçá-lo a confessar o delito, ou por haver caído em contradição, ou para descobrir os cúmplices, ou por qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia, ou, finalmente, por outros delitos de que poderia ser réu, mas dos quais não é acusado” (pág. 40).

No passado, não muito remoto, tal prática ainda acontecia no nosso ordenamento jurídico, ou melhor, no nosso país. Tanto é que para inibir esse procedimento, o constituinte de 1988 instituiu alguns postulados constitucionais, que ora os chamou de fundamentos da República, como é o caso da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), ora os denominou de Direitos e Garantias Fundamentais dos cidadãos, como é o caso dos seguintes princípios: a) ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; b) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; c) são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; (art. 5º, incisos III; LIV e LVI).

Enuncia a Carta Magna com relação ao primeiro postulado constitucional que:

a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político (art. 1º).

Foi a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha que por primeiro erigiu a dignidade da pessoa humana em direito fundamental expressamente estabelecido no seu art. 1º, n. 1, declarando: a dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os poderes estatais. Fundamentou a positivação constitucional desse princípio, de base filosófica, o fato de o Estado Nazista ter vulnerado gravemente a dignidade da pessoa humana mediante a prática de horrorosos crimes políticos sob a invocação de razões de Estado e outras razões9.

Os mesmos motivos históricos justificaram a declaração do art. 1º da Constituição Portuguesa, segundo o qual: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”10.

De igual modo aconteceu com a Constituição Espanhola, cujo art. 10, n. 1, estatui: “a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social”11.

No nosso país não foi diferente, a tortura e toda sorte de desrespeito a pessoa humana praticadas sob o regime militar levaram o constituinte brasileiro a incluir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme o disposto no inciso III do art. 1º da CF de 198812.

A Constituição de 1988 optou por não incluir a dignidade da pessoa humana entre os direitos fundamentais, inseridos no extenso rol do art. 5º. A opção constitucional brasileira, quanto à dignidade humana, foi por considerá-la, expressamente, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, consignando-a no inciso III do art. 1º.13.

Parece que o objetivo principal da inserção do princípio em tela na Constituição foi fazer com que a pessoa seja fundamento e fim da sociedade, porque não pode sê-lo o Estado, que é um meio e não um fim, e um meio que deve ter como finalidade, dentre outras, a preservação da dignidade do homem14.

A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência e sua eminência, transformou-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito15.

Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional16.

A importância desse princípio está bem delineada na lição de Alexandre de Morais, quando diz que a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo involuntário que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessidade estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos17.

Em síntese, a Constituição Federal reconhece o individuo como limite e fundamento da supremacia estatal18.

E diríamos mais: o valor dignidade da pessoa humana deve ser entendido como absoluto respeito aos seus direitos fundamentais, assegurando-se condições dignas de existência para todos.

Sob a tutela do direito processual penal, esse princípio, ou melhor, esse fundamento da República proíbe toda e qualquer barbárie contra aqueles que se encontram sob investigação criminal, independentemente de lei que regulamente a matéria.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, quanto ao segundo postulado constitucional, que:

ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal  (art. 5, LIV) ;

A Constituição Federal de 1988 incorporou o princípio do devido processo legal, que remonta à Magna Charta Lebertatum de 1215, de vital importância no Direito anglo-saxão, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem assegura que: “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (art. XI, n.1).

Inovando em relação às antigas Cartas, a Constituição atual referiu-se expressamente ao devido processo legal, além de fazer referência explícita à privação de bens como matéria a beneficiar-se também dos princípios próprios do direito processual penal19.

O devido processo legal configura dupla proteção ao individuo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto ao âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa20.

O princípio do due processo of law, estampado em nossa Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LIV), protege o cidadão contra a ingerência arbitrária do Estado, proibindo a este exercer o seu direito de punir senão por meio de um processo judicial legítimo, concedendo ao acusado o direito de oferecer resistência, produzir provas e influenciar no convencimento do julgador. Não se concebe, assim, a existência de uma pena sem o respectivo processo21.

No âmbito processual penal, lembra Fernando Capez que esse princípio garante ao acusado a plenitude de defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica, de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação e em todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões, ressalvadas as exceções legais, de ser julgado perante o juiz competente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imutabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgado22.

Com isso, no instante em que um ilícito penal é cometido, já deve haver uma lei regulamentando o procedimento para sua apuração. Outrossim, não podem as partes optar por procedimento diverso daquele previsto na lei, por se tratar de matéria de ordem pública.

Lembramos que o princípio do devido processo legal vale não só para qualquer processo judicial, seja criminal ou civil, como também para os processos administrativos, sobretudo os disciplinares e os militares.

Ressaltamos, por conseguinte, que são muitas as vozes que se levantam contra a assunção nacional do referido princípio, que, no caso, já estaria totalmente especificado em outras normas constitucionais. Para muitos autores, a referência ao princípio faz sentido apenas no Direito Constitucional norte-americano, de onde promanou a doutrina do devido processo legal. Isso ocorre já que a Constituição daquele país é essencialmente principiológica, e, como se sabe, o Judiciário faz decorrer dele inúmeras normas não expressamente inscritas no texto da Constituição de 1.789 e posteriores emendas23.

Não podemos deixar de destacar como um avanço a inserção expressa desse princípio na Carta Magna, para garantir ao cidadão maior segurança jurídica na busca de uma prestação jurisdicional.

Com relação ao terceiro postulado constitucional, a que nos referimos acima, alude o Texto Fundamental, que:

são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, inciso LVI).

Decorre desse princípio a impossibilidade de se colacionar, no processo, provas obtidas por meios ilícitos, entendendo-as como aquelas colhidas em desrespeito às regras do direito positivo, ou melhor, direito material.

As provas ilícitas não se confundem com as provas ilegais e as ilegítimas. Enquanto, conforme já analisado, as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desrespeito ao direito processual. Por sua vez, as provas ilegais seriam o gênero do qual as espécies são as provas ilícitas e as ilegítimas, pois configuram-se pela obtenção com violação de natureza material ou processual ao ordenamento jurídico24.

Saliente-se, porém, que a doutrina constitucional passou a atenuar a vedação das provas ilícitas, visando corrigir distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Esta atenuação prevê, com base do Princípio da Proporcionalidade, hipóteses em que as provas ilícitas, em caráter excepcional e em casos extremamente graves, poderão ser utilizadas, pois nenhuma liberdade pública é absoluta, havendo possibilidade, em casos delicados, em que se percebe que o direito tutelado é mais importante que o direito à intimidade, segredo, liberdade de comunicação, por exemplo, de permitir-se sua utilização25.

Na jurisprudência pátria, somente se aplica o princípio da proporcionalidade pro reo, entendendo-se que a ilicitude é eliminada por causas excludentes de ilicitude, em prol do princípio da inocência26.

Observa-se, entretanto, que a jurisprudência pátria vem mitigando essa proibição, ainda que em casos excepcionais, permitindo seu uso quando favorável ao acusado, explicando, em resumo, que, na colisão entre a inadmissibilidade da prova ilegal (direito a intimidade) e a presunção de inocência, deve prevalecer esta última, decorrência lógica do princípio da proporcionalidade27.

Também não se admite a chamada prova ilícita por derivação, inspirada em antiga doutrina americana denominada fruits of the poixonous tree, ou frutos da árvore envenenada28.

Com ser assim, afirmamos que a regra deve ser a inadmissibilidade das provas obtidas

por meios ilícitos, que só excepcionalmente deverão ser admitidas em juízo, em respeito às liberdades públicas e ao princípio da dignidade humana na colheita de provas e na própria persecução penal do Estado, conforme assinalou o Ministro Celso de Mello (STF – RE 251.445-4/GO).

Beccaria, no Capítulo XIV, preocupado com os indícios e com as formas de julgamento, afirmou, inicialmente, que há um teorema geral muito útil para calcular a certeza de um fato, isto é, a força dos indícios de um crime, para, em seguida, assinalar que:

Públicos sejam os julgamentos e públicos sejam as provas do crime, para que a opinião, que é talvez o único cimento da sociedade, imponha freio à força e às paixões, para que o povo diga não somos escravos e somos defendidos, sentimento que inspira coragem e que equivale a um tributo ao soberano que conhece seus verdadeiros interesses (pág. 58).

Nada mais atual do que a preocupação de Beccaria para com a publicidade dos atos processuais, pois já sabia, àquela época, que a não publicidade levaria a arbitrariedade do aplicador da pena.

Os atos processuais são públicos, é dizer, com acesso irrestrito, somente comportando exceções na hipótese de violação à intimidade da pessoa ou quando o interesse social impuser o sigilo, segundo a norma constitucional29.

Em última análise, atualmente, representa o princípio da publicidade um controle da justiça realizada pela coletividade, como bem apregoou Cesare Beccaria.

Concluiu Edílson M. Bonfim que ao se conferir publicidade aos atos processuais, reconhecemos um dos alicerces do Estado Democrático, na medida em que temos como primeiro fundamento a possibilidade de que tanto as partes quanto a sociedade possam exercer controle sobre os autos praticados em juízo30.

É tão valoroso esse princípio que a própria Constituição Federal de 1988 cuidou de estabelecer, no seu art. 93, inciso IX, que:

todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

Esta imposição constitucional permite a qualquer do povo (e não apenas às partes) aferir a imparcialidade do julgador e a justiça da sua decisão31.

Lembramos que a motivação das decisões também é uma forma de controle da sociedade, pois é através dela que se avalia o exercício da função jurisdicional.

A falta de uma completa fundamentação da decisão judicial já é, por si mesma, uma violação ao princípio da publicidade, tendo em vista que a motivação propicia a comunicação ou divulgação do iter seguido pelo magistrado para prolatar sua decisão neste ou naquele sentido32.

Por outro lado, o professor André Ramos Tavares, demonstra preocupação com a exasperação do princípio da publicidade, pois pode não atingir com tanto impacto os magistrados de carreira, mas alcança, dentre outros, os jurados, que estão sujeitos à força da mídia, por serem leigos33.

Pontua o constitucionalista que os casos das CPIs, como a do Judiciário, são provas de que a publicidade excessiva pode ser tão ou mais perigosa que o próprio sigilo. Para citar um exemplo internacional, veja-se o caso J. Simpson, ocorrido nos Estados Unidos da América do Norte. Ou ainda o caso Daniella Perez, no qual houve claro clamor popular, incitado pelas partes interessadas e os respectivos meios de comunicação. O excesso de publicidade pode prejudicar em qualquer sentido, tanto na defesa quanto na acusação34.

Ainda quanto à publicidade, é preciso sublinharmos que esta requer linguagem adequada, vale dizer, apropriada para transmitir a mensagem, sob pena de se desvirtuar o cerne da questão, prejudicando o magistrado, que exerce um múnus público, ou, até mesmo, o que está sob julgamento, condenando-o ao escárnio público, sem ao menos o Judiciário haver dado o seu veredicto.

Com bastante proficiência, Cesare Beccaria, em outra oportunidade, ponderou que crueldade, consagrada pelo uso na maioria nadas nações, é a tortura do réu durante a instrução do processo.

Consternado, com isso, afirmou, naquela época, que:

Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada (pág. 61).

E não foi outra a preocupação do constituinte de 1988, senão a de estabelecer no art. 5º, inciso LVII, que:

ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal.

A Constituição Federal estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal, consagrando a presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal35.

Deste postulado, preleciona o professor Rogéria Sanches que resultam as seguintes conseqüências: a) qualquer privação da liberdade do acusado somente se admite após sua condenação definitiva, o que não impede sua prisão provisória em situações excepcionais, isto é, quando se revelarem imprescindíveis; b) direito de o acusado ser informado, em tempo hábil, de todas as provas contra ele reunidas a fim de que possa contrariá-las eficazmente; c) cumpre à acusação o dever de demonstrar a responsabilidade do réu e não a este comprovar sua inocência; d) a condenação deve derivar da certeza do julgador, sendo que eventual dúvida será interpretada me favor dor réu (in dubio pro reo)36.

Por sua vez, assinala Eugênio Pacelli que o princípio da inocência ou estado ou situação jurídica de inocência, impõe ao Estado a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo a qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e a outra, de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência de fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação37.

Vislumbramos desse postulado constitucional, à primeira vista, uma aplicação mitigada, eis que não proíbe a decretação da prisão cautelar do réu, considerando que a própria Constituição Federal admite a prisão antes do transito em julgado da condenação, desde que preenchidos certos requisitos descritos na lei (art. 5º, inciso LXI).

Já, por outro lado, há quem entenda que o princípio encontra efetiva aplicabilidade, sobretudo, no campo de prisão provisória, isto é, na custódia anterior ao trânsito em julgado e no do instituto chamado de liberdade provisória.

Para Eugênio Pacelli, o princípio exerce função relevantíssima, ao exigir que toda privação da liberdade antes do trânsito em julgado deva ostentar natureza cautelar, com a imposição de ordem judicial devidamente motivada. Em uma palavra, o estado de inocência (e não a presunção) proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização da jurisdição penal38.

Neste mesmo diapasão, pensa o constitucionalista Alexandre de Morais, ao dizer que a consagração do princípio da inocência, porém, não afasta a constitucionalidade das espécies de prisões provisórias, que continua sendo, pacificamente, reconhecida pela jurisprudência, por considerar a legitimidade jurídico-constitucional da prisão cautelar, que, não obstante a presunção juris tantum de não-culpabilidade dos réus, pode validamente incidir sobre seu status libertatis. Dessa forma, permanecem válidas as prisões temporárias, em flagrante, preventivas, por pronúncia e por sentenças condenatórias sem trânsitos em julgado39.

Há também quem veja o princípio puramente como a inversão do ônus da prova, como é o caso de Pedro Lenza, à medida que ponderou que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Assim, nada mais natural do que a inversão do ônus da prova, ou seja, a inocência é presumida, cabendo ao Ministério Público provar a culpa. Caso não o faça, a ação penal deverá ser julgada improcedente40.

Dessa forma, há necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal.

Ainda preocupado com a angustia que o cárcere causa, defendeu Cesare Beccaria rapidez na pena, ao dizer que:

Quanto mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido, tanto mais será ela justa e tanto mais útil. Digo mais justa, porque poupa ao réu os tormentos cruéis e inúteis da incerteza, que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria franqueza; mais justa, porque a privação da liberdade, sendo uma pena, só ela poderá preceder a sentença quando a necessidade o exija (pág. 71).

Igual postura teve o legislador brasileiro, embora tardia, ao introduzir na Carta Magna, no seu inciso LXXVIII do art. 5º (Emenda Constitucional nº 45), o postulado do prazo razoável, no título de direitos e garantias fundamentais , que dispõe que:

a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

A Convenção Americana de Direitos humanos já ditava que: “toda pessoa tem direito a ser ouvida, coma as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou qualquer outra natureza”.

Sob certos aspectos tais direitos são inovações meramente formais, na exata medida em que se poderia encontrá-los no princípio mais genérico do devido processo legal. Neste grau, pois, é possível considerar a inserção do inciso LXXVIII, como repetição e especificação desnecessárias. Se todos têm direito a um devido processo legal, está nele inerente a necessidade de um processo com duração razoável, pela abertura conceitual daquela garantia plasmada constitucionalmente41.

Ainda assim, não há como negar a importância da celeridade quando se fala em razoável duração. A celeridade na obtenção das decisões judiciais, aliás, tem sido uma constante também na Europa. A esse respeito, vale registrar a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (caso Pammel), em 1997, condenando a Alemanha pela excessiva duração dos processos42.

Assim também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), em seu art. 8º, usa a expressão prazo razoável, referindo-se ao direito de toda pessoa ser ouvida por um juiz ou tribunal competente43.

Tornando a celeridade do processo (judicial e administrativo) e os meios necessários para alcançar esse objetivo, explicitamente, direitos fundamentais, resta, ainda, enfrentar outra possível dúvida: saber se essa será mais uma daquelas normas meramente programáticas, desprovidas de eficácia prática e de sanção pelo não-cumprimento imediato44.

Indagação ainda sem resposta satisfatória, uma vez que as condições estruturais do sistema judiciário, por exemplo, não podem ser alteradas por um passe de mágica, o que significa dizer que o direito fundamental da razoável duração do processo tende a ecoar no vazio por longo tempo, até que outras medidas que lhe confiram sustentação e realizabilidade se implementem.

Não basta a inserção de algumas normas de índole constitucional, tais como: a) mudança no cabimento do recurso extraordinário; b) súmula vinculante; c) atuação do Conselho Nacional de Justiça; d) fim das férias coletivas; e) distribuição imediata de processo em todo os graus da jurisdição; f) Justiça itinerante, é preciso dotar o sistema judiciário de elementos estruturais (aumentar o número de juízes e de serventuários da Justiça; construir fóruns e equipá-los adequadamente para tal mister, etc) e de fiscalização (equipar e conscientizar as corregedorias de justiça, de modo que possam realmente fiscalizar os trabalhos forenses), para viabilizar o direito fundamental da celeridade.

Destaca Cesare Beccaria que erro não menos comum, porque contrário ao fim social, que é a opinião da própria segurança, é deixar ao magistrado, executor das leis, o alvedrio de prender o cidadão, de tirar a liberdade do inimigo sob frívolos pretextos o de deixar o amigo impune, mesmo havendo os mais fortes indícios de culpabilidade.

Com efeito, mais adiante, realça que:

Prisão é pena que, por necessidade, deve, diversamente de todas as outras, ser procedida da declaração do delito, mas este caráter distintivo não lhe tira o outro traço essencial, a saber, que somente a lei determine os casos em que o homem merece a pena. Assim, a lei apontará os indícios do delito que exige a guarda do réu, sujeitando-o a um interrogatório e a uma pena (pág. 98).

A Constituição Federal adotou como princípio, para combater qualquer influência no julgador e dá, por outro lado, mais segurança jurídica aos jurisdicionados, o da legalidade, que pode ser visto de duas formas.

A primeira, o princípio da legalidade vem estampado no inciso II do art. 5º, da Constituição Federal, que assim dispõe:

ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Trata-se o princípio da legalidade da base fundamental do Estado de Direito, a submissão de todos ao império da lei. Uma das decorrências ideológica da Revolução Francesa e da conquista da burguesia. Somente a lei pode limitar a vontade individual, por ser um produto da vontade geral, e obrigar alguém a fazer ou não fazer alguma coisa.

Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei45.

Por outro lado, fazendo a leitura em sentido inverso, pelo princípio da legalidade, um indivíduo pode fazer tudo o que a lei não proíbe ou não determina.

O princípio da legalidade exige, ainda, o princípio da inafastabilidade do controle judicial, que lhe é correlato (previsto no inciso XXXV do art. 5º) e sem o qual a garantia da legalidade seria inócua, porque faleceria competência a um órgão para verificar o cumprimento do princípio da legalidade46.

A própria proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada é corolário do princípio da legalidade. Sim, porque legalidade significa não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei, e lei existente no momento em que se faz ou deixa de fazer. É a aplicação do princípio da irretroatividade das leis47.

Tanto há violação do princípio da legalidade pela inobservância da lei existente como pela inexistência de lei que fundamente a existência imposta. É o que já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal, ao dizer que: “a inobservância ao princípio da legalidade pressupõe o reconhecimento de preceito de lei dispondo de determinada forma e provimento judicial em sentido diverso, ou, então, a inexistência de base legal e, mesmo assim, a condenação a satisfazer o que pleiteado”48.

O termo lei, ao qual se remete qualquer estudo do princípio da legalidade, há de ser entendido de maneira a englobar desde os preceitos constitucionais, assim como a lei ordinária, a lei complementar e até mesmo a lei delegada e a medida provisória49.

A segunda, o princípio da legalidade vem consignado no inciso XXXIX do art. 5º, da Constituição Federal, que assim estabelece:

não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação lega.;

Do exposto resulta que o princípio da legalidade que ora abordamos e que tem valor constitucional não tem reflexos apenas no Direito Penal, mas se há de projetar no processo penal em geral, na organização e funcionamento dos tribunais, no direito penitenciário.

Ensina Assis Toledo que o princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera de liberdades individuais. Daí sua inclusão na Constituição, entre os direitos e garantias fundamentais50.

Percebemos, então, que a preocupação de outrora, refletiu diretamente na ordem legal pátria, com a instituição do princípio da legalidade. O presente postulado (espinha dorsal do garantismo) é uma conquista do individuo contra o poder de polícia do Estado, valendo também para as contravenções penais e medidas de segurança.

O princípio da legalidade, que se consubstancia no particular princípio da reserva legal, ensina o professor José Afonso da Silva, não se satisfaz com a simples autorização genérica da lei; ou seja, não se trata de simples garantia formal da liberdade. Quer dizer que não basta a existência de lei anterior à conduta. É indispensável uma descrição específica da conduta tida como lesiva a um bem jurídico. Vale dizer que a ação humana, para ser crime, há de corresponder objetivamente a uma conduta descrita tipicamente pela lei51.

O princípio da legalidade onde só é lei o ato aprovado pelo Parlamento, representante do povo, exprime a democracia, na medida em que subordina o comportamento individual apenas e tão-somente à vontade manifestação pelos órgãos de representação popular52.

Preocupado também com a quem caberia do direito de punir, assinalou Cesare Beccaria que:

O direito de mandar punir não é de um só, mas de todos os cidadãos ou do soberano. Ele pode renunciar somente à sua porção de direito, mas não anular a dos outros (pág. 100).

Igualmente preocupado, já que em um passado não muito remoto preponderava isso mesmo, o constituinte introduziu o princípio do juiz natural na Constituição Federal, para inibir qualquer a ingerência estatal no julgamento dos processos, através de dois dispositivos constitucionais, quais sejam, incisos XXXVII e LIII do art. 5º, que assim dispõem:

a) não haverá juízo ou tribunal de exceção; b) ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

O princípio do juiz natural tem origem no direito anglo-saxão, construído inicialmente sobre a idéia da vedação do tribunal de exceção, isto é, a proibição de se instituir ou se constituir um órgão do Judiciário exclusiva ou casuisticamente para o processo e julgamento de determinada infração penal53.

Posteriormente, por obra do direito norte-americano, acrescentou-se, na elaboração do princípio, a exigência da regra de competência previamente estabelecida ao fato, fruto, provavelmente, do federalismo adotado desde a formação política daquele Estado.

Um dos princípios fundamentais da função jurisdicional, eis que intimamente relacionado com a imparcialidade do juízo, a garantia do juiz natural foi trazida para o direito brasileiro, desde o início, em seu dúplice aspecto: a) proibição de juízo ou tribunal de exceção (tribunal ad hoc), isto é, criado ex post facto para o julgamento de um determinado caso concreto ou pessoa (CF, XXXVII); b) garantia do juiz competente (CF, art. 5º, LIII), segundo a qual ninguém será subtraído ao seu juiz constitucionalmente competente54.

Pontifica Eugênio Pacelli de Oliveira que o direito brasileiro, adotando o princípio em suas duas vertentes fundamentais, a da vedação de tribunal de exceção e a do juiz cuja competência seja definida anteriormente à prática do fato, reconhece como juiz natural o órgão do Poder Judiciário cuja competência, previamente estabelecida, derive de fontes constitucionais. É a razão de tal exigência assenta-se na configuração do nosso modelo constitucional republicano, em que as funções do poder público, e particularmente do Judiciário, têm distribuição extensa e minudente55.

Nelson Nery Júnior, em interessante estudo, observa que a garantia do juiz natural é tridimensional. Significa que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm o direito submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituinte na forma da lei; 3) o juiz competente tem de ser imparcial56.

De acordo com o princípio do juiz natural, as regras de competência devem estar preestabelecidas pelo ordenamento jurídico. Ninguém pode ser processado ou julgado por uma autoridade especialmente designada para o caso. Esse dispositivo tem por finalidade assegurar o julgamento por um juiz independente e imparcial.

O princípio do juiz natural, em outras palavras, significa dizer que todos têm a garantia constitucional de serem submetidos a julgamento somente por órgão do Poder Judiciário, dotado de todas as garantias institucionais e pessoais previstas no Texto Constitucional. Juiz natural é, portanto, aquele previamente conhecido, segundo regras objetivas de competência estabelecidas anteriormente à infração penal, investido de garantias que lhe assegurem absoluta independência e imparcialidade57.

A Constituição veda os tribunais de exceção, ou seja, aqueles criados especialmente para julgar determinados crimes ou pessoas, em casos concretos. Esses tribunais não se confundem com as justiças especializadas e o foro privilegiado. Aquelas foram instituídas pela própria Constituição para o julgamento de determinadas espécies de crimes, com o respeito, ao princípio da anterioridade à prática do fato.

Afirma o Ministro Celso de Mello que não somente os juízes, tribunais e órgãos jurisdicionais previstos na Constituição se identificam ao juiz natural, mas também outros órgãos que detêm o poder de julgar, como o Senado nos casos de impedimento de agentes do Poder Executivo58.

Corroborando com o Ministro do Supremo Tribunal Federal, assevera Alexandre de Morais que o referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se, não só a criação de tribunais ou juízes de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão julgador59.

O destinatário da proibição é, em um primeiro momento, o próprio Estado, o qual fica impedido de criar juízo de exceção. Neste ponto, trata-se de direito (garantia) do indivíduo. Mas também o cidadão, que não poderá senão submeter-se ao juízo preconcebido que lhe é apresentado para a solução de seu litígio60.

Não deixou Cesare Beccaria de anotar, ao estabelecer critérios para os processos e prescrições, que:

conhecidas as provas e calculada a certeza do crime, necessário é conceder ao réu tempo e meios convenientes para justificar-se (pág. 101).

Esse preceito defendido por Beccaria, corresponde ao principio constitucional da ampla defesa, que está inserido na Carta Magna, no seu art. 5º, inciso LV, que assim dispõe:

aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerente.

Notamos que o princípio da ampla defesa evoluiu muito no Direito Processual Penal, não é mais como apregoava Beccaria, ou melhor, como ele pensava em um dia ser, ou seja, no sentido de se oportunizar ao réu os meios de se defender da acusação que lhe foi imposta, ou, até mesmo, impugnar toda e qualquer alegação contrária a seu interesse. Atualmente, a ordem jurídica, ao menos na letra da lei, preocupa-se com a concreta efetividade com que se exerce a defesa.

Hoje, o réu tem direito a autodefesa, que consiste no direito ao interrogatório, ou seja, de ser ouvido pelo juiz da causa, assim como de participar de toda a instrução do processo, isto é, de se fazer presente nas audiências de oitiva de testemunhas, por exemplo.

Além disso, diferentemente do que ocorria antigamente, o réu tem direito a defesa técnica, que significa a participação de um defensor habilitado para tal mister, que, atualmente, é o advogado, regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

Daí haver afirmado o processualista Eugênio Pacelli que a ampla defesa se realiza por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado61.

Aliás, conforme teve oportunidade de decidir a Suprema Corte, a manifestação da defesa, patrocinada por defensor público ou dativo, quando limitada ao pedido de condenação ao mínimo legal é causa de nulidade do processo, exatamente por ausência de defesa efetiva (HC 82.672/RJ).

Diz ainda o processualista acima que a compreensível preocupação com o efetivo exercício da ampla defesa, levou Suprema Corte a elaborar duas novas súmulas de sua jurisprudência, quais seja, a de n. 705, a dispor que a renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta, e a de n. 707, no sentido de que constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denuncia, não a suprida a nomeação de defensor dativo62.

3. Conclusão

Em conclusão, podemos afirmar que a obra: “Dos Delitos e Das Penas” foi um marco para o Direito Penal e quiçá para o Direito Processual Penal, influenciado o mundo sobre os princípios fundamentais a serem inseridos num Estado Democrático de Direito, em busca de garantir maior segurança jurídica àqueles que estão sob a tutela do Estado.

Disse Beccaria no alto de sua sabedoria que de tudo quando se viu até agora poderá extrair-se um teorema geral muito útil, mas pouco de acordo com o uso, legislador, por excelência, das nações, ou seja, para que a pena não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular, deverá ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre os possíveis, nas dadas circunstâncias ocorridas, proporcional ao delito e ditada pela lei.

Digamos nós agora que o teorema geral para o processo penal é que ele seja mais célere, sem se desprender dos princípios da ampla defesa e do contraditório, corolário do devido processo legal, que possa caminhar sem percalços ou embaraços, com uma instrução mais enxuta, mais rápida e mais objetiva, a fim de que a pena possa ser aplicada com a maior proximidade do delito.

Como realçou Beccária, na sua pequena grande obra, a certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa a impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade, pois, os males, mesmos os menores, quando certos, sempre surpreendem os espíritos humanos, enquanto a esperança, dom celestial que frequentemente tudo supre em nos, afasta a idéia de males piores, principalmente quando a impunidade, outorgada muitas vezes pela avareza e pela fraqueza, fortalece-lhe a força.

O que esperamos do processo penal constitucional é que sirva de suporte jurídico ao processo penal infraconstitucional, a fim de que a aplicação da pena seja feita bem mais próxima do crime, pois será mais justa e mais útil, e, por conseguinte, servirá, como maior eficácia, para prevenir o delito, diante da certeza da sua aplicabilidade, afastando, assim, o fantasma da impunidade.

Com a chegada do processo penal constitucional imaginamos, como espera o professor Eugênio Pacelli, que o direito processual penal brasileiro não possa mais ser aplicado com base na estrutura do ainda vigente Código de Processo Penal. As mudanças inúmeras, trazidas com a Constituição da República, anunciam novos tempos para o trato da matéria, não só por força de uma interpretação explícita de normas constitucionais em sentido contrário ao Código, mas, sobretudo, pelo grau de maturidade cultural alcançado pelo Estado brasileiro pós-constituinte63.

Nesse quadro, os princípios fundamentais do processo não podem se afastar de tal missão. Princípios, então, que se apresentam como normas fundantes do sistema processual, sem os quais não se cumpriria a tarefa de proteção aos direitos fundamentais. O Direito Processual Penal, portanto, é, essencialmente, um direito de fundo constitucional64.

Há quem entenda, como o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que a Constituição brasileira preocupou-se profundamente em assegurar os direitos do indivíduo em matéria penal. Tanto assim que abundam no art. 5º regras que ficariam melhor no Código de Processo ou no Código Penal. É de roldão com regras importantes foram constitucionalizados dispositivos de importância menor65.

Ousamos discordar do eminente constitucionalista, em que pesem seus conhecimentos jurídicos, pois entendemos que diante das circunstancias vividas antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, era importante assegurar os direitos dos indivíduos em matéria penal, para inibir o legislador ordinário, destinatário dos preceitos constitucionais, de qualquer tentativa de suprimi-los, já que estavam tão arraigados ao antigo regime (autoritário).

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1 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi di, 1738 – 1794. Dos Delitos e Das Penas. Tradução: J. Cretella e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, págs. 9/10.

2 Idem, ibidem, pág. 10.

3 Cesare Beccaria, op. cit. págs. 9/10.

4 DA SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, pág. 145.

5 Idem, ibidem.

6 CUNHA, Rogério Sanches. Uma breve síntese dos postulados constitucionais. In obra: Princípios Penais Constitucionais: Direito e Processo Penal à Luz da Constituição Federal. Organizada por SCHMITT, Ricardo Augusto. Salvador: PODIVM, 2007, pág. 29

7 Idem, ibidem.

8 Idem, ibidem.

9 DA SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, pág. 37.

10 José Afonso da Silva, op. cit. pág. 37.

11 Idem, ibidem.

12 Idem, ibidem.

13 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pág. 492.

14 Idem, ibidem.

15 José Afonso da Silva, op. cit. pág. 38.

16 Idem, ibidem.

17 DE MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pág. 50.

18 Rogério Sanches Cunha, op. cit. pág. 24

19 Alexandre de Morais, op. cit. pág. 38.

20 Idem, ibidem, pág. 93

21 Idem, ibidem, pág. 93.

22 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, pág. 30.

23 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pág. 627.

24 MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pág. 95.

25 Idem, ibidem, pág. 97.

26 Idem, ibidem, pág. 97.

27 Rogério Sanches Cunha, op. cit. págs. 18/19.

28 Idem, ibidem.

29 Rogério Sanches Cunha, op. cit. págs. 25 e 26.

30 BONFIM, Edílson M. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1987.

31 Rogério Sanches Cunha, op. cit. pág. 21.

32 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 634.

33 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 635.

34 Idem, ibidem, pág. 635.

35 Alexandre de Morais, op. cit. pág. 103.

36 Rogério Sanches Cunha, op. cit. pág. 23.

37 DE OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 3 ed. Belo Horizonte: DelRey, 2004, pág. 26.

38 Eugênio Pacelli de Oliveira, op. cit. pág. 27.

39 Alexandre de Morais, op. cit. pág. 103.

40 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 7 ed. São Paulo: Editora Método, 2004, pág. 432.

41 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 629.

42 Idem, ibidem.

43 Idem, ibidem.

44 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 630.

45 MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pág. 36.

46 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 562.

47 Idem, ibidem.

48 STF, 2ª T. Agra 147203/SP, rel. Ministro Marco Aurélio, DJ, 11/06/93, p. 11531.

49 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 563.

50 TOLEDO, Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2000, pág. 21.

51 José Afonso da Silva, op. cit. pág. 137.

52 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pág. 282.

53 DE OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 3 ed. Belo Horizonte: DelRey, 2004, pág. 19.

54 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, pág. 10.

55 Eugênio Pacelli de Oliveira, op. cit. pág. 19.

56 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 4 ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1997, pág. 66.

57 Idem, ibidem, págs. 24/25.

58 MELLO FILHO, José Celso. A tutela judicial da liberdade. Artigo publicado na RT 526/291.

59 Alexandre de Morais, op. cit. pág. 76.

60 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 631.

61 Eugênio Pacelli de Oliveira, op. cit. pág. 25.

62 Idem, ibidem, págs. 25/26.

63 Eugênio Pacelli de Oliveira, op. cit. pág. 17.

64 Eugênio Pacelli de Oliveira, op. cit. pág. 17.

65 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit. pág. 304.

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