A RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO E A FACILITAÇÃO DO EXERCÍCIO DESTE INSTITUTO DE DIREITO
NÉLIO SILVEIRA DIAS JÚNIOR
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Responsabilidade civil – 3. Responsabilidade pelo fato do produto e do serviço – 4. Responsabilidade pelo vício do produto e do serviço – 5. Responsabilidade objetiva – 6. Cláusulas excludentes de obrigação de indenizar – 7. Da facilitação da defesa dos direitos – 7.1 Inexistência dos efeitos da revelia – 7.2 Inversão do ônus da prova – 7.3 Vedação da denunciação da lide – 7.4 Foro privilegiado do domicílio do consumidor – 8. Decadência – 9. Prescrição – 10. Conclusão – 11. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A responsabilidade civil, nas relações de consumo, atrai nossa atenção e justifica nossas reflexões. É direito que visa proteger os consumidores hipossuficientes, via de regra, diante do fornecedor (empresário e prestador de serviços), elo mais fraco da relação negocial, merecedor da intervenção do Estado.
No Brasil, diz Leonardo Rescoe Bessa, a relevância da defesa do destinatário final de produtos e serviços pode ser notada a partir da Lei Fundamental. A Constituição Federal de 1988 referiu-se à proteção jurídica do consumidor em três oportunidades.
O princípio da defesa do consumidor pelo Estado inclui-se entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXXII). Em outro tópico, como um dos princípios gerais da atividade econômica, indicou-se a defesa do consumidor (art. 170, V). Além disso, nos termos do art. 48 das disposições constitucionais transitórias, restou estabelecido que o Congresso Nacional deveria, no prazo máximo de 120 dias, após a promulgação da Constituição, elaborar código de defesa do consumidor1.
Indubitável é que os direitos fundamentais não mais se resumem a direitos de defesa contra a interferência estatal na esfera jurídica particular2. Sabe-se, atualmente, que eles também conferem aos particulares direitos de proteção, direitos à organização e ao procedimento e direitos a prestações sociais3.
Mais do que isso a doutrina reconhece que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais. É sua missão proteger os cidadãos nos seus interesses subjetivos. Deve prestar proteção nos aspectos normativos: administrativo jurisdicional.
O art. 5º, XXXII, da Constituição Federal deu ao direito do consumidor o status de direito fundamental4, afirmando expressamente que o Estado promoverá, na forma da lei, a sua defesa. Lembra-nos, Luiz Guilherme Marinoni que, em razão do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, editou-se o Código de Defesa do Consumidor5.
A defesa do consumidor não é um princípio de ordenação econômica (art. 170, V) mas sim a enfatização da necessidade de protegê-lo contra abusos de direitos. Liga-se este princípio à norma do art. 5º, XXXII, que outorga ao Estado a missão de defendê-lo.
Como o Código de Defesa do Consumidor confere proteção diferenciada ao consumidor, nos mais diversos aspectos, forçoso é, antes de análise específica da responsabilidade civil, tecermos breves considerações relativas ao campo de incidência desse diploma legal.
A Lei nº 8.078/90 individualiza os seus destinatários, destacando-se entre eles o consumidor e o fornecedor. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2º) . Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviço (art. 3º).
Mantendo-se o mesmo critério a que é submetida a pessoa física, a pessoa jurídica só pode ser considerada consumidor quando os bens ou serviços adquiridos não tiverem vinculação com a sua atividade, ou ainda quando não tiver ela caráter empresarial, como as fundações, as associações e as sociedades civis sem fins lucrativos6.
A Lei Consumerista não define, mas conceitua os termos: consumidor e fornecedor, produto e serviço. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial (art. 3º, § 1º). Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista (art. 3º, § 2º).
A abrangência do Código de Defesa de Consumidor está adstrita às relações negociais, das quais participam, necessariamente, consumidor e fornecedor, incidindo-se sobre produtos e serviços, estes os últimos não-gratuitos e de caráter não-trabalhista.
Não há pretensão, com a deliberação da área de estudo, esgotarmos o tema. O objetivo maior é trazer à discussão a questão, que reputamos uma das mais importantes em uma sociedade de produção e de consumo em massa, procurando dar ênfase à facilitação da defesa dos direitos do consumidor, ao tempo em que demonstraremos que esse direito é de índole constitucional, catalogado no rol dos Direitos Fundamentais, objeto de uma proteção maior do Estado Democrático de Direito.
2. Responsabilidade civil
Muito embora o vocábulo responsabilidade (do latim respondere) tenha sentido equívoco, motivo pelo qual não é pacífico seu significado, pode-se afirmar que responsabilidade é, na acepção jurídica do termo, o dever jurídico de recomposição do dano7.
A responsabilidade constitui, assim, uma relação obrigacional cujo objeto é o ressarcimento. Não se confunde com a obrigação originária, já que ela é invariavelmente um dever jurídico sucessivo ou suplementar decorrente da violação de outra obrigação. A responsabilidade é uma obrigação ex lege ou ex voluntas constituída por um fato, que é a violação de um dever jurídico preexistente. E essa transgressão se dá pela conduta comissiva ou omissiva de um sujeito cuja atividade desenvolvida pode ser: ilícita por natureza; lícita por natureza, porém ilícita pelo resultado danoso; ou, ainda, a conseqüência dos danos acarretados por uma coisa ou um animal sob a guarda dele8.
Logo, ato ilícito e responsabilidade não se confundem, embora entrelaçados como causa e conseqüência. De igual modo, a conduta desconforme ao ordenamento jurídico difere do dever de reparação do dano causa.
O diploma consumerista consagrou a responsabilidade objetiva do fornecedor, tendo em vista especialmente o fato de vivermos, hoje, em uma sociedade em massa, responsável pela despersonalização ou desindividualização das relações entre produtores, comerciantes e prestadores de serviços , em um pólo; e compradores e usuários de serviços, no outro.
Pontifica o Prof. Rizzato Nunes que o Código de Defesa do Consumidor adotou a Teoria da Responsabilidade Objetiva, incorporada à Teoria do Risco do Negócio9.
Nesta concepção a responsabilidade com apuração de culpa já não era mais suficiente para salvaguardar os direitos do consumidor no mercado de consumo atual. Se, toda vez que sofresse algum dano, o consumidor tivesse que alegar culpa do fabricante do produto ou do prestador do serviço, suas chances de ser indenizado seriam mínimas, pois a apuração e prova da culpa são muito difíceis10.
No mundo atual, de consumo de massa, o importante é a constatação do fato de que mesmo que o fabricante ou o prestador do serviço não aja com culpa, ainda assim seus produtos e serviços podem ter defeitos e ocasionar danos.
É a chamada responsabilidade pelo fato/vício do produto ou do serviço prestado ou, em outras palavras, é a preocupação como o dano que a coisa, o produto, bem como o serviço em si, possam causar ao consumidor. É a teoria moderna que coloca o próprio objeto e serviço como causas do evento danoso. São os produtos ou os serviços em si mesmo os causadores do
evento danoso11.
Assim, despicienda é a apuração da culpa do fabricante, produtor, etc., na elaboração do produto ou do prestador do serviço, desde que provada a entrada no mercado de consumo e eles podem potencialmente ocasionar danos ao consumidor. É a estes que o Código dirige sua preocupação12.
Uma vez ocorrido o dano, cabe ao consumidor apenas apontar nexo de causalidade, bem como identificar o evento que o ocasionou, ou apontar o produto ou o serviço que gerou o evento e, ainda, nominar na ação judicial o fabricante, o produtor, o construtor, o importador ou o prestador do serviço, que colocaram o produto ou o serviço no mercado13.
A responsabilidade civil regulamentada pelo Código de Defesa do Consumidor biparte em responsabilidade pelo fato do produto e do serviço; e a responsabilidade por vício do produto ou serviço, ambas de natureza objetiva.
Em uma outra divisão, Roberto Senise Lisboa assinalou que o Código de Defesa do Consumidor brasileiro sistematizou a responsabilidade civil do fornecedor, para a tutela de interesses sem relevância social (interesses individuais e individuais plúrimo) e com relevância social (interesses individuais homogêneos, coletivos e difuso)14.
Enfatizou que o legislador tentou de separar a responsabilidade civil em duas grandes categorias: a) a responsabilidade pelo fato do produto e serviço, cujo fundamento é a ofensa a um direito extrapatrimonial, que pode ser eventualmente cumulada com algum dano patrimonial, ou, ainda, ter como fundamento único a ameaça a algum direito extrapatrimonial do consumidor (arts. 12 a 17 da Lei 8.078/90); b) a responsabilidade pelo vício do produto e serviço, cujo fundamento é a ofensa a um direito patrimonial, que pode ser eventualmente cumulada com a ameaça a algum direito extrapatrimonial do consumidor (art. 18 a 25 da Lei 8.078/90)15.
A distinção entre as hipóteses de fato e vício do produto e do serviço não apresenta facilidades, mas é de fundamental importância , pois as conseqüências jurídicas previstas em lei para cada um desses casos diferem em muitos aspectos.
Portanto, falaremos sobre essas hipóteses em tópicos separados, tentando evidenciar as suas peculiaridades.
3. Responsabilidade pelo fato do Produto e do Serviço
É derivada de danos do produto ou serviço, também chamada de acidentes de consumo.
Considera-se como sendo fato do produto todo e qualquer acidente provocado por produto, ou serviço, que causar dano ao consumidor, estendendo-se a todas as vítimas do evento.
Zelmo Denari tem-na como decorrente da exteriorização de um vício de qualidade; vale dizer, de um defeito capaz de frustrar a legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição16.
Existe uma tendência doutrinária direcionada ao estabelecimento de uma dicotomia entre vício de qualidade e defeito, o que é negado por Zelmo Denari, pois essas expressões se implicam, reciprocamente. Tanto se pode aludir ao vício de qualidade como um defeito de um produto, como ao defeito como um vício de qualidade do mesmo produto17.
O defeito ou vício de qualidade cinge-se à qualificação de desvalor atribuída a um produto ou serviço por não corresponder à expectativa do consumidor, quanto à sua utilização ou fruição, bem como por adicionar riscos à integridade física dos mesmos ou a de terceiros.
Em outras palavras, considera-se defeituoso o produto que não revele a segurança que dele se poderia esperar, levados em consideração: sua apresentação, o seu uso e o seu risco os quais razoavelmente dele é esperado, levando-se em conta a época em que foi introduzido no mercado de trabalho (art. 12, § 1º, do CDC).
Também se considera defeituoso, para efeitos de indenização, o produto que contenha informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e seu risco, inclusive os de caráter publicitário (art. 30, do CDC).
Desse conceito induz-se que um produto ou serviço é defeituoso quando não corresponde à legitima expectativa do consumidor a respeito de sua utilização ou fruição, vale dizer, quando a desconformidade do produto ou serviço compromete a sua prestabilidade ou servibilidade18.
Ainda um produto ou serviço é defeituoso, quando sua utilização ou fruição é capaz de adicionar risco à segurança do consumidor ou de terceiros. Nesta hipótese, podemos aludir a um vício ou defeito de segurança do produto ou do serviço19.
O Código de Defesa do Consumidor se ocupa dos vícios de adequação em sua Seção III, disciplinando-os nos arts. 18 a 25, e dos vícios de segurança em sua Seção II, arts. 12 a 17, sob a rubrica da Responsabilidade pelo Fato do Produto ou do Serviço.
O art. 12 da lei consumerista ocupa-se da responsabilidade do fornecedor por danos decorrentes dos vícios de qualidade dos bens, rectius, de defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento dos produtos20.
A responsabilidade por danos decorrentes de vício de qualidade, alcança o consumidor e terceiros, vítimas do evento, e supõe a ocorrência de três pressupostos: a) defeito do produto; b) eventus damni; c) relação de causalidade entre o defeito e o evento danoso21.
Atente-se para o fato de que o produto, às vezes, não ostenta vício de qualidade, mas é fornecido com informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos – como dispõe in fine o art. 12 – ocasionando danos ao consumidor ou a terceiros e que, da mesma sorte, implicam a obrigação de indenizar22.
Além dos vícios de qualidade, os vícios de informação podem ocasionar acidentes de consumo, passíveis de indenização se as instruções relativas à utilização do produto ou à fruição dos serviço não o acompanharem ou pecarem pela falta de clareza e precisão23.
A responsabilidade por danos causados aos consumidores em razão da prestação de
serviços defeituosos é disciplinado pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.
Valem para esse tipo de responsabilidade as considerações expendidas para a responsabilidade pelo fato do produto.
4. Responsabilidade pelo vício do Produto e do Serviço
Os artigos 18 a 25, do Código de Defesa do Consumidor individualizou os vícios de qualidade ou quantidade dos produtos ou serviços.
Os bens ou serviços fornecidos podem ser afetados por vícios de qualidade ou de quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária (art. 18, do CDC).
A relação de responsabilidade, nesta hipótese, não tem similaridade com a anteriormente versada, por isso que se ocupa somente de vícios inerentes aos produtos ou serviços. Neste caso, portanto, a responsabilidade está in re ipsa, e seu fundamento é diverso daquele que enuncia a responsabilidade por danos24.
Bem observado, trata-se de um princípio da garantia que guarda similaridade, mas é
inconfundível com os vícios redibitórios, da teoria civilística. A primeira distinção a ser feita é que os vícios redibitórios são defeitos ocultos da coisa que dão causa, quando descobertos, à resilição contratual, com a conseqüente restituição da coisa defeituosa, ou ao abatimento do preço25.
Os vícios de qualidade ou quantidade dos produtos ou serviços, ao revés, podem ser ocultos ou aparentes – não importa – e contam com mecanismo reparatórios muito amplos, abrangentes e satisfatórios do que aqueles previstos no instituto civilístico26.
Preambularmente, importa esclarecer que no pólo passivo desta relação de responsabilidade se encontram todas as espécies de fornecedores, coobrigados e solidariamente responsáveis pelo ressarcimento dos vícios de qualidade e quantidade eventualmente apurados no fornecimento de produtos ou serviços27.
5. Responsabilidade Objetiva
Uma das considerações mais importantes, nesta sede, diz respeito ao caráter objetivo da responsabilidade, seja pelo fato do produto ou do serviço, seja pelo vício do produto ou do serviço.
O Código de Defesa do Consumidor acolheu o postulado da responsabilidade objetiva, uma vez que, no plano probatório, desconsidera quaisquer investigações relacionadas à conduta do fornecedor.
A abolição do elemento subjetivo da culpa na aferição da responsabilidade, destaca José Reinaldo de Lima Lopes, não significa exclusão dos demais pressupostos já comentados, a saber: evento danoso, defeito do produto ou serviço, bem como relação de causalidade entre ambos. É por essa razão que o dispositivo enfocado, em seguida ao afastamento da culpa, alude aos danos causados dos consumidores, por defeitos decorrentes de projeto, fabricação28.
O consumidor, portanto, nos casos de responsabilidade objetiva, tem, apenas, que provar o dano e o nexo causal. A discussão da culpa é inteiramente estranha às relações de consumo. Mesmo em relação ao dano e ao nexo causal pode vir a ser beneficiado com a inversão do ônus da prova29.
O CDC ao dispor que o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de seus produtos, admitiu a responsabilidade objetiva fundada no risco do empreendimento (arts. 12 e 14).
Com pertinência, acentua Sérgio Cavalieri Filho que o Código do Consumidor, correta e corajosamente, deslocou a responsabilidade do comerciante para o fornecedor (fabricante, produtor, etc.), colocando-o na cabeça da cadeia da relação de consumo. Transferiu, também, do consumidor para o produtor os riscos do consumo. Pode-se, então, dizer que o Código esposou a teoria do risco do empreendimento (ou empresarial) que se contrapõe à teoria do risco do consumo30.
Pela teoria do risco do empreendimento, todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Este dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decorre do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado do consumo, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos31.
Com proficiência ensina o professor Roberto Senise Lisboa que a aplicação da teoria da responsabilidade embasada no risco da atividade profissional deflui da função social do direito, buscando-se a efetiva reparação do prejuízo da vítima e a eficiente defesa dos
interesses socialmente relevantes32.
O absolutismo dos direitos individuais deu lugar, portanto, ao princípio da relatividade dos direitos e de sua vocação social. A massificação nas relações jurídicas viabilizou a objetivação cada vez maior da responsabilidade. O direito pós-moderno procura restabelecer o equilíbrio da relação jurídica, partindo do pressuposto segundo o qual há, em determinadas situações, a inferioridade ou vulnerabilidade de uma das partes. Essa é a razão pela qual se procura conferir maior proteção aos interesses da vítima. Esse foi o motivo que levou uma lei pós-modernista a adotar a velha teoria da responsabilidade objetiva ou sem culpa, porém sob a ótica da justiça distributiva e da solidariedade social, fundada na teoria do risco da atividade profissional33.
Ademais, é importante ressaltarmos que a responsabilidade é estendida solidariamente, a todos os que compõem o elo básico na colocação de produtos no mercado, quando autores da ofensa (art. 7º, parágrafo único, do CDC). Isso significa dizer que o consumidor pode escolher a quem quer acionar: um ou todos. Como a solidariedade obriga a todos os responsáveis simultaneamente, todos respondem pelo total dos danos causados.
No ordenamento jurídico pátrio, não há limitação para a indenização, estando afastada a denominada indenização tarifada. Com efeito, havendo danos causados aos consumidores, o fornecedor deve indenizá-los em sua integralidade.
Não é por demais aduzirmos que a indenização derivada do fato do produto ou serviço não pode ser excluída, contratualmente. No cotidiano, não são raras as vezes que vemos cláusulas de exclusão de responsabilidade. No entanto, o CDC considera abusiva e, por conseguinte, nula a cláusula contratual que impossibilitar, exonerar ou atenuar a responsabilidade civil do fornecedor por vícios de qualquer natureza, incluídos aqui os acidentes de consumo e os vícios redibitórios (art. 51).
6. Cláusulas excludentes de obrigação de indenizar
Muito embora tenha acolhido os postulados da responsabilidade objetiva, que
desconsideram os aspectos subjetivos da conduta do fornecedor, o Código de Defesa do Consumidor não deixou de estabelecer um elenco de hipótese que mitigam aquela responsabilidade, denominadas “causas excludentes”.
O diploma consumerista é objetivo em especificar, o fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: a) que não colocou o produto no mercado; b) que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; c) a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 12, § 3º, incisos I a III).
Colocar o produto no mercado de consumo significa introduzi-lo no ciclo produtivo-distributivo, de forma voluntária e consciente.
A culpa exclusiva é inconfundível com a culpa concorrente: no primeiro caso, desaparece a relação de causalidade entre o defeito do produto e o evento danoso, dissolvendo-se a própria relação de responsabilidade; no segundo, a responsabilidade se atenua em razão da concorrência de culpa, e os aplicadores da norma costuma condenar o agente causador do dano a reparar pela metade o prejuízo, cabendo à vítima arcar com a outra metade34.
A doutrina, contudo, sem vozes discordantes, tem sustentado o entendimento de que a lei pode eleger a culpa exclusiva como única excludente de responsabilidade, como fez o Código de Defesa do Consumidor nesta passagem. Caracterizada, portanto, a concorrência de culpa, subsiste a responsabilidade integral do fabricante e demais fornecedores arrolados no caput, pela reparação dos danos35.
Só se admite causa exonerativa da responsabilidade e conseguinte a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, não a culpa concorrente. Assim, mesmo havendo culpa concorrente da vítima, persiste a obrigação de o fornecedor indenizá-la por inteiro. Só ficará exonerado dessa obrigação, se provar culpa exclusiva do consumidor ou do usuário do serviço.
As hipóteses de caso fortuito e força maior, descritas no art. 1.058 do Código Civil
como eximentes da responsabilidade na ordem civil, não estão relacionadas dentre as causas excludentes da responsabilidade pelo fato do produto.
A doutrina mais atualizada, no entanto, já se advertiu de que esses acontecimentos – ditados por forças físicas da natureza ou que, de qualquer forma, escapam ao controle do homem e tanto podem ocorrer antes, como depois da introdução do produto no mercado de consumo.
Na primeira hipótese instalando-se na fase de concepção ou durante o processo produtivo, o fornecedor não pode invocá-la para se subtrair à responsabilidade por danos.
Quando o caso fortuito ou força maior se manifesta após a introdução do produto no mercado de consumo, ocorre uma ruptura do nexo de causalidade que liga o defeito ao evento danoso. Nem tem cabimento qualquer alusão ao defeito do produto, uma vez que aqueles acontecimentos, na maior parte das vezes imprevisíveis, criam obstáculos de tal monta que a boa vontade do fornecedor não pode suprir. Na verdade, diante do impacto do acontecimento, a vítima sequer pode alegar que o produto se ressentia de defeito, vale dizer, fica afastada a responsabilidade do fornecedor pela inocorrência dos respectivos pressupostos36.
Objetivamente entendemos que, nada obstante a excludente do caso fortuito ou da força maior não haver sido inserida no rol das excludentes de responsabilidade do fornecedor, mesmo assim é possível ser suscitada, haja vista o fato inevitável romper o nexo de causalidade, especialmente quando não guarda nenhuma relação com a atividade do fornecedor, excluindo-se a hipótese de se falar em defeito do produto ou do serviço.
A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, no sentido de que o fato de o art. 14, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, não arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocados37.
7. Da facilitação da defesa dos direitos
É princípio informativo das relações de consumo a facilitação da defesa dos direitos do consumidor, destacando-se expressamente, no próprio microssistema jurídico de proteção do destinatário final de produtos e serviços, entre outros casos: inexistência dos efeitos da revelia; a inversão do ônus da prova; a vedação da denunciação da lide; e o foro privilegiado para se propor a demanda.
7.1 Inexistência dos efeitos da revelia
Os sistemas processuais são marcados, basicamente, por dois princípios fundamentais: a) o dispositivo e b) inquisitivo, os quais se inter-relacionam para dar o grau de efetivação do direito material a ser tutelado juridicamente. O processo civil é marcado pela prevalência do princípio dispositivo, por incidir, geralmente, sobre direitos materiais e de natureza patrimonial.
Conseqüência do princípio dispositivo, no processo civil, é a visualização da defesa como um ônus da parte; isto é, aquele que é citado para se defender pode não fazê-lo, assumindo, neste caso, o risco de sucumbir e, de todo modo, ficando sujeito à decisão judicial. Essa concepção também é um traço da noção publicística do processo civil contemporâneo, o qual, ao contrário do processo civil romano, que exigia o consenso do demandado, não tem natureza contratual, podendo existir mesmo que o demandado não compareça em juízo38.
O ônus da impugnação específica, previsto no art. 302 do CPC, é tanto uma decorrência do princípio dispositivo, já que recai apenas sobre os direitos materiais de caráter patrimonial deduzidos no processo civil, quanto uma implicação do princípio inquisitivo, pois, na ausência de impugnação dos fatos narrados na petição inicial, eles se presumem verdadeiros, servindo esta presunção como um critério de julgamento (art. 330, II, do CPC).39
Tal presunção é o aspecto mais significativo da revelia e, no sistema do Código de Processo Civil, somente deixa de se aplicar em casos excepcionais, previstos nos incisos dos artigos 302 e 32040.
Indagamos se esse preceito legal aplica-se ao consumidor demandado, nas relações de consumo.
Em virtude do sistema protetivo, criado para a defesa do consumidor, dúvidas não há de que as relações de consumo não se sujeitam ao ônus da impugnação específica e à presunção de veracidade, decorrente da revelia.
Não obstante a Lei 8.078/90 não contemple todas as regras processuais a serem aplicadas às relações de consumo, é certo que, pelo art. 7º do CDC, a legislação interna ordinária (na hipótese, o Código de Processo Civil) somente se aplica caso não contrarie os direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor. Logo, toda vez que houver incompatibilidade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código de Processo Civil, o intérprete deixará de aplicar este Código, para não contrariar o sistema de proteção do consumidor41.
A maior razão para a não aplicação do art. 302 do CPC às relações do consumidor está na própria essência do princípio dispositivo que, conforme já se salientou, nada mais é do que a contemplação da idéia da autonomia privada no âmbito do processo civil. O Código de Defesa do Consumidor representa uma reação aos postulados do direito privado clássico, o qual estava amparado na autonomia das vontades e na liberdade plena de contratar42.
Não é por outra razão que o art. 1º da Lei nº 8.078/90 estabelece que as normas protetivas do consumidor são de ordem pública e interesse social. Cabe ao interprete, pois, retirar destas expressões a sua força normativa, impedindo que o processo seja utilizado como um meio de contemplação de injustiças.
As disposições do Código de Defesa do Consumidor são de ordem pública porque, para serem aplicadas pelo juiz não dependem de requerimento das partes e são de interesse social, uma vez que as relações de consumo, de um modo geral, por envolverem contratos de adesão, atingem aspectos relevantes a toda a sociedade, exigindo uma interpretação diversa daquelas regras que se aplicariam aos contratos clássicos, envolvendo duas ou mais pessoas, com ampla liberdade para a discussão das cláusulas contratuais e para a manifestação da vontade43.
Se a Lei 8.078/90 contém disposições de ordem pública, nada mais correto que concluir que o magistrado pode, mesmo ex officio, aplicá-las, em detrimento do fornecedor que pretende, em face da ausência ou da imperfeição da defesa processual, fazer valer as cláusulas abusivas, por ele redigidas no contrato, além das obrigações iníquas e as vantagens exageradas44.
Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Paraná decidiu que o ônus da impugnação específica do réu (art. 303 do CPC), inerente ao princípio dispositivo, cede espaço para que o Estado-juiz, rompida a inércia jurisdicional, analise as cláusulas contratuais de acordo com as normas de ordem pública protetivas do consumidor, evitando que o fornecedor que descumpre a Lei 8.078/90 seja beneficiado pela negligência da defesa45.
Este posicionamento está adequado às novas linhas do processo civil moderno, o qual deixou de ser uma coisa das partes, um mero prolongamento do direito privado violado, para ser um instrumento público de realização da justiça. Isto implica a relativização do alcance do princípio dispositivo no processo civil, para que o magistrado, diante deste mecanismo público de solução de litígios, não fique vinculado, acriticamente, ao pedido formulado pelo demandante, sobretudo, em relação de consumo, já que marcadas por normas de ordem pública e de interesse social (art. 1º do CDC), não podendo o réu-consumidor ser prejudicado, em razão de não desincumbimento do ônus da impugnação específica dos fatos alegados pelo autor-fornecedor, nem pela ausência total de contestação, não se sujeitando à presunção de veracidade decorrente da revelia46.
7.2 Inversão do ônus da prova
A inversão do ônus da prova é um meio de facilitação dos direitos do consumidor, já que, por meio dela, incumbirá ao fornecedor a demonstração de ausência do nexo de causalidade, ou, ainda, de excludente da responsabilidade civil.
Via de regra, quem deveria produzir tal prova seria o consumidor, mas um dos princípios basilares do Código é justamente o da “inversão do ônus da prova”, previsto no inciso VIII do art. 6º, aplicável quando o juiz considera verossímeis as alegações do consumidor, segundo as regras de experiência.
A expressão hipossuficiência é historicamente utilizada pela doutrina para indicar a parte economicamente mais fraca na relação jurídica e que merece, por causa da situação de inferioridade perante a outra parte, a proteção especial do legislador47. Mas, precisamente, para as relações de consumo, o legislador do CDC, protetivo do consumidor, preferiu não conceituá-la, deixando ao arbítrio do julgador, segundo as regras ordinárias de experiência.
É o que vem a ser regra ordinária de experiência para Roberto Senise Lisboa, é um conceito jurídico indeterminado. É a norma que se extrai do empirismo jurídico tornando-se imprescindível para a conceituação de consumidor hipossuficiente, portanto, uma análise geral da sua situação jurídica perante o fornecedor no mercado de consumo48.
O reconhecimento judicial da hipossuficiência pode ser feito, é verdade, à luz da situação socioeconômico do consumidor perante o fornecedor (hipossuficiência fática). Todavia, a hipossuficiência fática não é a única modalidade contemplada na noção de hipossuficiência a situação jurídica que, por exemplo, impede o consumidor de obter a prova que se tornaria indispensável para responsabilizar o fornecedor pelo dano verificado (hipossuficiência técnica)49.
Não são raras as vezes em que o consumidor não tem como demonstrar o nexo de causalidade para a fixação da responsabilidade do fornecedor, eis que este é quem possui a integralidade das informações e detém o conhecimento técnico do produto ou serviço fornecido.
Daí se justificar a inversão do ônus da prova, em favor do consumidor, para facilitar a defesa de seus direitos.
Destarte, milita em prol do consumidor essa presunção de defeito do produto e incumbe ao fornecedor desfazê-la, produzindo inequívoca prova liberatória. Da mesma sorte, quanto à ocorrência do dano e ao quantum devido, cumpre ao fornecedor demonstrar sua inexistência ou inconsistência, conforme o caso50.
A hipossuficiência não é a única que viabiliza a inversão do ônus da prova. A verossimilhança (aparência da verdade) também possibilita tal medida judicial, que tanto em um como noutro caso deve ser fundamentada.
A concessão judicial da inversão do ônus da prova efetuada a partir do art. 6º, VIII, do CDC não é automática porque depende da aferição judicial dos pressupostos para que se opere tal direito. Trata-se de inversão ope iudice, aplicada pelo magistrado conforme as circunstância do caso, e que não se confunde com a inversão prevista pelo art. 38 do CDC, que é aplicável ope legis e independe, pois, de deliberação judicial51 .
A pretexto de que o Código de Defesa do Consumidor é norma jurídica de ordem pública e de interesse social, entendemos que a inversão do ônus da prova poderá ser concedida ex officio. Em outras palavras, pode o julgador inverter o ônus da prova mesmo sem o requerimento do interessado.
O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou sobre o tema, no sentido de ser possível a concessão da inversão do ônus da prova de ofício, ou seja, automaticamente, pelo julgador52.
Há, contudo, entendimento em contrário. Para Roberto Senise Lisboa, não parecer ser esse o melhor caminho. É mais razoável, para ele, admitir-se a inversão do ônus da prova tão-somente mediante o requerimento da parte, sob pena de se vulnerar os princípios processuais da imparcialidade e da inércia do juiz. A inversão do ônus da prova por decisão ex offcio fere o princípio constitucional do due process of law, pois a lei consigna expressamente a regra segundo a qual o ônus da prova incumbe a quem a alega, e a legislação consumerista não concede expressamente ao juiz o poder para proceder a essa inversão53.
Outra questão merece destaque: é a da oportunidade efetivação da inversão do ônus da prova, ou melhor, qual o momento processual em que ela pode ser concedida.
Kazuo Watanabe opina no sentido de que a orientação prevalecente entende ser a inversão do ônus da prova pode ser realizada no julgamento da causa54.
Discordamos dessa orientação. A inversão deve ser conferida até o final da fase postulatória, para, como lembra Rizzatto Nunes, não se surpreender indevidamente a outra parte, até mesmo porque ao juiz é facultada, ao final do processo, a conversão do julgamento em diligência. A aceitação do pedido de inversão após o início da fase instrutória importa em tumulto processual e atenta contra os princípios constitucionais do due process of low, do contraditório e da ampla defesa.
Ao inverter o ônus da prova, o julgador deverá explicitar que provas entende pertinentes e quais delas serão o objeto da inversão. Não se fazendo presente qualquer um dos fundamentos para a inversão judicial do ônus da prova, ela deverá ser negada.
7.3 Foro privilegiado do domicílio do consumidor
O foro do domicílio do autor é uma regra que beneficia o consumidor, dentro da orientação fixada no inciso VII do art. 6º do CDC, a fim de facilitar o acesso aos órgãos judiciários.
Cuida-se, porém, de opção dada ao consumidor, que dela poderá abrir mão para, em benefício do réu, eleger a regra geral, que é a do domicílio do demandado (art. 94, do Código de Processo Civil).
A faculdade outorgada ao consumidor pelo art. 101, I, da Lei 8.078/90, de escolher o
foro do seu domicílio para ajuizar a ação de responsabilidade civil por danos causados pelo fornecedor constitui-se norma processual que procura inibir os obstáculos que o destinatário final de um produto ou serviço possa vir a encontrar, caso tenha a pretensão de perceber indenização por danos morais ou patrimoniais.
A jurisprudência vem reconhecendo a importância da norma de competência em apreço, admitindo até mesmo como juízo competente, o do cumprimento da obrigação, ainda que diverso do foro do domicílio do próprio consumidor ou do fornecedor, desde que não se dificulte a defesa dos direitos de qualquer um dos interessados.
7.4 – Vedação da denunciação da lide
A lei consumerista proíbe a denunciação da lide nas ações que versem sobre a responsabilidade pelo fato do produto e serviço (art. 13, parágrafo único, e art. 88). A referida vedação tem por objetivo tornar mais rápido o trâmite do processo, adequando-o ao binômio celeridade e justiça, para que se viabilize de forma mais eficiente a reparação dos danos sofridos pelo consumidor.
Havendo necessidade de “denúncia”Nessa hipótese, a ação de regresso poderá ser ajuizada em processo autônomo, facultada a possibilidade de prosseguir-se nos mesmos autos (art. 88, do CDC), uma vez findo aquele processo.
Esclarece o Desembargador e Professor Sérgio Cavalieri Filho que aquele que paga a indenização nem sempre é o único causador do dano, razão pela qual o Código lhe assegura o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso. É uma conseqüência natural da solidariedade passiva e da sub-rogação legal que se opera em favor do devedor que paga a dívida dos outros55.
Lembra, o mesmo autor, que o fato de haver o legislador inserido o dispositivo que trata do direito de regresso como parágrafo único do artigo que cuida da responsabilidade subsidiária do comerciante não deve levar ao entendimento de que a sua aplicação fica limitada aos casos de solidariedade entre o comerciante e o fabricante, produtor ou importador. Neste ponto há consenso entre todos os comentaristas do Código no sentido de ter sido infeliz a localização do dispositivo. Na realidade, é ele aplicável a qualquer caso de solidariedade, possibilitando ao devedor que satisfaz a obrigação voltar-se contra os coobrigados56.
8. Decadência
A responsabilidade de qualquer dos fornecedores pelo fato/vício do produto ou do serviço somente pode ser reclamada judicialmente em determinado prazo fixado em lei, sob pena de decadência, ou seja, perda do direito material pelo decurso do tempo. O assunto está disciplinado no art. 26, do Código de Defesa do Consumidor.
O CDC, nessa passagem, ressente-se de atecnia legislativa, registra Zelmo Denari, pois – a exemplo do que faz o Código Civil e outras codificações posteriores – deveria ser utilizado, indistintamente, do vocábulo prescrição, relegando à doutrina e jurisprudência estabelecer critérios distintivos entre a prescrição e a decadência, até porque se trata de tema eriçado de dificuldades, além do que um dos mais controvertidos e polêmicos da teoria geral do Direito57.
Resta saber se as hipóteses normatizadas correspondem, efetivamente, à decadência e à prescrição dos direitos reparatórios previstos no Código de Defesa do Consumidor58. Há quem sustente que a decadência deve ser entendida como a extinção de direitos subjetivos que deixarem de ser constituídos pela inércia dos respectivos titulares, em determinado período de tempo59.
Outro critério usado para tornar mais clara a discussão sobre prescrição e decadência é o de que esta não pode sofrer nenhum processo interruptivo.
Neste aspecto, o Código de Defesa do Consumidor desfaz esse preceito ao dispor que obstam a decadência a reclamação formulada pelo consumidor até a resposta negativa do fornecedor de produtos e de serviços; e a instauração de inquérito civil, até o seu encerramento (art. 26, § 2º).
Zelmo Denari não vê diferença, entre os dois institutos. Ambos expressam o perecimento de direitos subjetivos em estágio mais ou menos avançado do respectivo processo de formação. A decadência significa a extinção do direito subjetivo que não chega a se constituir, pela inatividade de seu titular, enquanto a prescrição significa, pelas mesmas razões, a extinção do direito subjetivo plenamente constituído60.
A distinção, portanto, menos de essência do que de grau, se angustia no terreno terminológico, pois, em última análise, ambos traduzem o mesmo fenômeno jurídico: a perda de direito pelo decurso do tempo61.
Por todo o exposto nos dispositivos legais que regem a matéria, o direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação extinguem-se, ou melhor, decaem em: a) trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; b) noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.
O termo inicial da decadência varia de acordo com o tipo de vício. Se o for aparente, o prazo decadencial inicia-se a partir da entrega efetiva do produto, ou do término da execução dos serviços. Se o for oculto conta-se do momento em que ficar evidenciado o defeito (art. 26, §§ 1º e 3º, do CDC).
9. Prescrição
A responsabilidade civil pelo fato do produto e serviço proporciona à vítima o direito de reclamar a reparação por danos morais. Todavia, a legislação que regulamenta a matéria impõe um limite de tempo para o exercício desse direito, sob pena de sua extinção.
Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria (art. 27, CDC).
O Código estabeleceu prazo prescricional único para todos os casos de acidente de consumo. Embora relativamente curto, esse prazo só começa a correr a partir do conhecimento do dano e de sua autoria62.
As causas de suspensão e interrupção do prazo prescricional, uma vez vetado o parágrafo único do art. 27, são aquelas previstas no Código Civil63.
A hipótese, da mesma sorte, é de decadência, pois trata do perecimento de direitos subjetivos em via de constituição. De todo modo, o dispositivo não merece, sob este aspecto, nenhuma censura. O vocábulo prescrição, segundo a tradição no nosso Direito, deve ser utilizado sempre que se fizer referência à extinção de direitos subjetivos, de qualquer natureza64.
10. Conclusão
O direito civil constitucional pátrio estabelece, à luz do pensamento da revalorização pessoal, que a República Federativa do Brasil é fundamentada na dignidade humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV, da Constituição Federal), possuindo como objetivos: a liberdade, a justiça, a solidariedade social, a redução das desigualdades e o bem comum (3º, I, III e IV, da Constituição Federal)65.
Desse modo, as relações jurídicas constituídas entre os agentes econômico do mercado de consumo (denominados pelo microssistema positivo pátrio de fornecedores e consumidores) sofrem a incidência tanto dos princípios gerais da ordem econômica (cuja finalidade é assegurar a todos uma vida digna, com justiça social), como dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivas (é o que ocorre com a inviolabilidade do direito à vida, à segurança, à igualdade, à liberdade e à propriedade).
O claro objetivo do legislador constituinte, portanto, era o de que fosse implantada uma Política Nacional de Relações de Consumo, uma disciplina jurídica única e uniforme
destinada a tutelar os interesses patrimoniais e morais de todos os consumidores66.
E isso, não podemos negar que aconteceu, embora com certo atraso. O Código de Consumidor entrou em vigor em março de 1991, revelando-se, na visão do mestre Sérgio Cavalieri Filho, desde então um diploma moderno, à altura das melhores e mais avançadas legislações dos países desenvolvidos. Seus princípios e normas são de ordem pública e interesse social, vale dizer67.
Assim, as normas jurídicas de proteção ao consumidor devem ser aplicadas nas relações entre fornecedores e consumidores segundo o seu fim social (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil), compatibilizando-se o avanço tecnológico e o desenvolvimento do mercado de consumo com a proteção patrimonial e biopsiquica dos agentes econômicos do mercado de consumo e da sociedade como um todo.
As modificações socioeconômicas proporcionadas pela massificação contratual e pelo avanço tecnológico acarretaram a necessidade de uma maior intervenção do Poder Público sobre as relações privadas e uma participação popular mais efetiva na adoção de soluções políticas, e na realização de atividades que ordinariamente estariam afetas ao governo, para que se pudesse reencontrar o equilíbrio das relações jurídicas.
Tais acontecimentos exigiram uma nova elaboração dos contornos dos principais institutos jurídicos, dentre eles a responsabilidade civil.
Todavia, esse instituto jurídico, na sua versão inicial, não se mostrou plenamente satisfatório para a resolução dos litígios envolvendo fornecedores e consumidores, diante da desigualdade formal, que, na prática, outorgava maiores vantagens para o detentor do poder, em detrimento dos interesses da massa.
Então, construiu-se a teoria da responsabilidade objetiva, que visa responsabilizar o agente econômico por danos patrimoniais e extrapatrimoniais quando age de forma ilegal e ilícita, sem, para tanto, ser necessária a demonstração da culpa do fornecedor do produto ou do serviço.
Através da responsabilidade objetiva, as vítimas passaram a ter o direito à reparação pelos prejuízos sofridos, decorrentes tanto dos atos ilícitos por natureza, como da atividade lícita que lhes fosse prejudicial quanto ao resultado, sob a premissa de que a análise e a prova da culpa do responsável da atividade são completamente dispensáveis, salvo quando a lei expressamente a exigir, sob a pena de se obstaculizar a percepção do direito em prol da vítima68.
A objetivação moderna da responsabilidade tornou possível uma proteção individual real e mais efetiva, além de representar um avanço considerável para a tutela coletiva e difusa por danos transindividuais, ora sob uma visão pós-modernista, em virtude das atividades profissionais destinadas às massas, diante do avanço tecnológico, dos meios de transporte e de comunicação e do fenômeno da globalização.
Infere-se de todo o exposto que a responsabilidade civil, tal como está disciplinada no Código de Defesa do Consumidor, atende perfeitamente aos anseios dos consumidores. Todavia, o que está faltando para torná-la mais eficaz, é a adoção de mecanismos capazes de tornar o Judiciário mais ágil nos seus procedimentos e mais efetivo no trato com as demandas individuais decorrentes das relações de consumo, uma vez que leva quase uma década para solução do litígio, que acaba, por falta justamente desses elementos, involuntariamente, beneficiando os agentes econômicos.
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1 BESSA, Leonardo Rescoe. Vícios dos produtos: paralelo ente o CDC e o Código Civil. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2005, pág. 282.
2 CANOTILHO, Gomes José Joaquim. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 541.
3 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentais. Madri: Centro de Estúdios Constitucionais, 1997, pág. 419.
4 MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental – Conseqüências jurídicas de um conceito. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo. Volume 43, p. 111.
5 MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica do Consumidor. Estudos em homenagem à Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Editora, 2005, pág. 106.
6 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 362.
7 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pág. 21/22
8 Idem, ibidem, pág. 23.
9 NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O código de defesa do consumidor e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Saraiva, 1997, pág. 272.
10 Idem, ibidem.
11 Idem, ibidem, pág. 273.
12 Luiz Antônio Rizzato Nunes, op. cit. pág. 273.
13 Idem, ibidem.
14 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 74.
15 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 74.
16 DENARI, Zelmo. Código brasileiro de defesa do consumidor. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitário, 2000, pág. 152.
17 Idem, ibidem.
18 Zelmo Denari, op. cit. pág. 153.
19 Idem, ibidem.
20 Zelmo Denari, op. cit. pág. 154.
21 Idem, ibidem.
22 Idem, ibidem, pág. 155.
23 Idem, ibidem.
24 Zelmo Denari, op. cit. pág. 177.
25 Idem, ibidem.
26 Idem, ibidem.
27 Idem, ibidem.
28 LOPES, José Reinaldo de Lima. Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pág. 33.
29 Sérgio Cavalieri Filho, op. cit. pags. 366/367
30 Idem, ibidem, pág. 366.
31 Idem, ibidem.
32 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 44.
33 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 44.
34 Zelmo Denari, op. cit. pág. 166.
35 Idem, ibidem.
36 Zelmo Denari, op. cit. pág. 168.
37 REsp 120.647-SP, 3ª T., rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU 15.05.2000, p. 156.
38 CAMBI, Eduardo. A inexistência do ônus da impugnação específica e da presunção de veracidade dos fatos não contestados, para o consumidor, nas relações de consumo. In artigo publicado na Revista de Direito Privado – Volume 14 – Abril/Junho – 2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pág. 260/261.
39 Idem, ibidem.
40 Idem, ibidem.
41 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: RT, 2001, pág. 98
42 Eduardo Cambi, op. cit. pág. 262.
43 Eduardo Cambi, op. cit. pág. 262.
44 Idem, ibidem, pág. 262.
45 ApCiv. 127.821-5 – 7ª Câm.Civ. – Rel. Des. Accácio Cambi – Unân. – J. 16.09.2002.
46 Eduardo Cambi, op. cit. pág. 263.
47 Roberto Senise Lisboa, op. Cit. pág. 100.
48 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 101.
49 Idem, ibidem, pág. 102.
50 Zelmo Denari, op. cit. pág. 166.
51 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 108.
52 STJ, 4ª Turma, REsp 591110/BA, rel. Mini Aldir Passarinho Jr., j. 04.05.2004, DJ 01.07.2004, p. 212. LEXSTJ 181/165.
53 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 109.
54 WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitário, 2000, pág. 619.
55 Sérgio Cavalieri Filho, op. cit. pág. 379.
56 Idem, ibidem.
57 Zelmo Denari, op. cit. pág. 195.
58 Idem, ibidem.
59 Zelmo Denari, op. cit. pág. 198.
60 Idem, ibidem, pág.
61 Idem, ibidem.
62 Sérgio Cavalieri Filho, op. cit. pág. 383.
63 Idem, ibidem.
64 Zelmo Denari, op. cit. pág. 202.
65 Roberto Senise Lisboa, op. cit. págs. 17/18.
66 Sérgio Cavalieri Filho, op. cit. pág. 357.
67 Idem, ibidem, pág. 358.
68 Roberto Senise Lisboa, op. cit. pág. 21.