A construção de um novo sol é um livro de Paulo Lins

Autor(a): Nélio Silveira Dias Júnior

Data: 08/01/2023

Na primeira parte, o autor do best-seller: Cidade de Deus conta, de forma de romance, a cativante história do surgimento do Bairro Mãe Luiza em Natal, mostrando, de princípio, os retirantes “fugindo da seca e do calor mortal” e indo para Capital do Rio Grande do Norte, em busca de um lugar para viver.

Paulo Lins inicia o livro com uma das descrições, com tom poético, mais perfeitas sobre a vida sob as agruras da seca, que assola o sertão:

 “Sol, o assassino que mata brilhando.

Aprendi a gostar, dentre todas as coisas, apenas das noites sem lua, porque não enxergo nada que te reflita. Odeio quando me vês, quando me envolves, quando tomas conta de tudo com teu olhar dono do mundo, desgraçando o que é meu.

O que importa se para alguns és o distribuidor de belezas, a luminosidade dos caminhos, a cura das trevas, se para mim és o mal da minha familia, das estradas que me cruzam, dos animais que me enfeitam, que me protegem, que me fazem festa, que matam a minha fome. Tu reinas enfumaçando o meu ar. És senhor da morte e da miséria, baluarte da dor, anúncio do vazio.

Eis aqui o meu pranto, essa água que me resta, para que tu o transformes em vapor, em nada, como os rios cujas pernas quebras, impedindo-os de chegar ao seu destino de morrer no oceano. Sucumbem jovens, sem a caminhada que poderiam seguir, produzindo flores, distribuindo riquezas, gerando florestas. Sobram só pedras, em vez de frutas. Os pastos são cemitérios com cadáveres à flor da terra.

Quisera eu viver no fundo do mar, num cume de montanha coberto de neve, num qualquer lugar em que não chegas. Daqui, onde estou agora, vejo as ossadas do gado, a maldade de teus olhos se espalhar no que já foi plantação. Enxergo o poço vazio, as árvores mortas, a doença de teus raios como praga nos humanos. Quantos já morreram por tua presença? Quantos já deixaram de nascer?

Eu nasci neste lugar, num tempo em que a chuva ainda vinha de quando em quando, no inverno, beijando os rostos dos velhos, acariciando o do dorso do gado, colorindo as flores. Mas depois vieste, deixando a noite coberta de lua e estrelas, como falsa felicidade, porque não vem carregada de água, chega sem a alegria do sereno, sem brisa molhada que nos afague, sem a esperança de te afastar para sempre.

És aquele que morre e renasce para matar. A aurora é o desespero anunciado. O azul que te cerca é uma metáfora do inferno.

Sol tu és o assassino que mata brilhando.”

 

 

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