A ausência de dolo na ação de improbidade administrativa produz efeito na ação penal

Nélio Silveira Dias Júnior (Advogado)

A ausência de dolo, constatada na sentença proferida em ação de improbidade administrativa, transitada em julgado, produz efeito em relação à ação penal, por inexistência de justa causa, levando ao seu trancamento.

Em não havendo ilicitude na conduta do réu, e isto tendo sido judicialmente comprovado e reconhecido em demanda que versa sobre improbidade administrativa, não há crime a punir.

Isto é assim porque o lícito exclui o dolo, primeiro e básico elemento do crime. Se a conduta é lícita, esta licitude é incompatível com o dolo, e, portanto, com o crime, que não pode haver em uma ação lícita e legal.

Se esta licitude e esta legalidade são reconhecidas judicialmente, por sentença transitada em julgado, não é possível então reconhecer crime no que é lícito e legal, posto ser harmônico o sistema jurídico, harmonia que não convive com a aberração da contradição: não pode um ato do agente ser lícito hoje e aqui, e amanhã e acolá este mesmo, mesmíssimo ato, ser ilícito.

É certo que as instâncias: penal e cível são autônomas e independentes entre si, mas aqui não se está tratando de pressupostos que sejam específicos do ato de improbidade e aqueles próprios das infrações penais. Aqui se está tratando de elemento constitutivo comum ao ato de improbidade e às infrações penais, qual seja, o dolo.

O dolo, exteriorização deletéria da vontade, é incriminado quer pelo direito civil, quer pelo administrativo, ou penal, ou disciplinar de igual forma, posto ser o mesmo e único o elemento volitivo em todas essas situações.

Embora um determinado ato ímprobo possa não constituir crime, e vice-versa, isto se dá no campo objetivo, mas não se concebe dolo diferente no ato ímprobo e no crime: ou o agente agiu com dolo num e noutro, ou não agiu com dolo quer num quer no outro, já que vontade é a mesma.

Por isso, se no plano objetivo prevalece a autonomia das instâncias, tal não se dá, com a mesma amplitude, no plano subjetivo.

O Superior Tribunal de Justiça já tratou dessa realidade, e, diante das circunstâncias, fez comunicar, sim, a sentença de improcedência cível na ação penal, a qual, com o julgamento cível, perde justa causa por ausência de dolo.

No caso então julgado pelo STJ, foi requerido habeas corpus para trancar ação penal já em curso, “uma vez que a paciente foi absolvida em virtude da ausência de elemento subjetivo” na ação civil de improbidade administrativa.

A ementa do acórdão prolatado resume com fidelidade a essência do julgamento do RHC 173.448-DF[1], pelo que é transcrita, no pertinente:

-” Nessa linha de intelecção, não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma em atipicidade, ensejadora do trancamento ora visado”.

– “Apesar de, pela letra da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa, na hipótese dos autos, em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a justa causa para manutenção da ação penal. De fato, não se verifica mais a plausibilidade do direito de punir, uma vez que a conduta típica, primeiro elemento do conceito analítico de crime, depende do dolo para se configurar, e este foi categoricamente afastado pela instância cível.[2]

Constata-se, assim, de forma excepcional, a efetiva repercussão da decisão de improbidade sobre a justa causa da ação penal em trâmite, motivo pelo qual não se justifica a manutenção desta última. Nas palavras do Ministro Humberto Martins, então Presidente da Corte: “a unidade do Direito’ deve se pautar pela coerência”.[3]

Este acórdão foi aguerridamente combatido pelo Ministério Público Federal, mas o decidido terminou confirmado, por unanimidade, pela Corte Especial do STJ, pelo que houve o trânsito em julgado aos 10 de novembro de 2023.

De fato, quando não há justa causa para a ação penal, o esperado é o seu trancamento (CPP, art. 395, III), urgentemente,  a fim de proteger o réu de um processo criminal indevido, por ser uma violação profunda aos seus direitos, manchando sua reputação e submetendo-o a constante ansiedade e sofrimento a cada dia que passa.

Se no processo penal, tiverem vários réus sendo processados, mas apenas sobre um ocorreu a improcedência da ação de improbidade administrativa, por ausência de dolo, somente com relação a ele dever ser trancada a ação penal, prosseguindo-a quanto aos demais, como acontece costumeiramente no caso de rejeição da denúncia (CPP, art. 395) ou absolvição sumária (CPP, art. 397).

Se a sentença na ação de improbidade administrativa, com trânsito em julgado, ocorrer antes da apresentação da resposta à acusação, é nela que se deve levantar a questão, esperando o resultado no despacho de recebimento ou não da denúncia. Se ocorrer depois dessa fase, mas antes da sentença, deve ser analisada imediatamente, como se fosse no exame das causas da absolvição sumária (CPP, art. 397, III), mesmo que já tenha sido proferido despacho desse momento processual.

Postergar a apreciação desse pedido representaria um agravo irreparável à dignidade do réu.

É imperativo que o sistema da justiça criminal atue com a máxima celeridade para debelar acusações infundadas e restaurar a honra do acusado.


[1] STJ, RHC nº 173.448, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, unânime, j. 7/3/23, DJe 13/3/23; grifos acrescentados.

[2] A propósito: REsp n. 1.689.173/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe de 26/3/2018); AgRg no HC n. 367.173/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/3/2017, DJe de 27/3/2017 e RHC n. 22.914/BA, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 4/11/2008, DJe de 24/11/2008.

[3] – Confiram-se: AgRg nos EDcl no HC n. 601.533/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 1/10/2021 e Rcl 41557, relator(a): Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03-2021 e HC 158319, Relator (a): Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 26/06/2018, DJe-219 DIVULG 11-10-2018 PUBLIC 15-10-2018.

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