Direito Funerário: falecimento e providências sobre o corpo
Por Nélio Silveira Dias Júnior
(Advogado)
Com o nascimento da pessoa natural, o falecimento é a única certeza que se tem; a dúvida reside apenas na data em que ocorrerá. Ainda assim, raramente alguém se preocupa com esse tema ou demonstra interesse em aprofundar-se nele. O olhar da maioria permanece voltado para a vida. E com razão. Contudo, possuir conhecimentos básicos sobre a morte e suas consequências jurídicas pode revelar-se de grande utilidade.
A morte constitui um fato jurídico de extrema relevância, capaz de gerar múltiplas repercussões no Direito, desde as mais simples até as mais complexas. Seus efeitos iniciam-se, de imediato, com o sepultamento, mas se estendem muito além desse momento, alcançando, por exemplo, o processo de inventário judicial.
Para essa análise, porém, o texto se limitará à etapa inicial.
O Código Civil de 2002, embora tenha tido a oportunidade de tratar do tema, não o fez em toda a sua amplitude. Restringiu-se a prever, no art. 14, que é válida, para fins científicos ou altruísticos, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Na ausência de regramento específico, o chamado Direito Funerário passou a buscar amparo nas normas esparsas, complementadas pela interpretação doutrinária e jurisprudencial.
A primeira questão a ser abordada aqui é a de que, com o falecimento de uma pessoa, a quem pertence o corpo do falecido e quem pode dispor sobre ele.
O corpo humano não é considerado propriedade no sentido tradicional. Trata-se de um bem jurídico fora do comércio, protegido por direitos da personalidade e, de forma mais ampla, pelos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade post mortem.
A disposição sobre o corpo do falecido cabe, em regra, à família, observada a ordem de parentesco: a) o cônjuge ou companheiro sobrevivente; b) os descendentes; c) os ascendentes; e d) os parentes colaterais. A legitimidade para decidir sobre o seu destino segue essa mesma ordem.
Tal critério decorre, por ausência de legislação específica, da disciplina conferida pela Lei nº 9.434/1997, que regula a remoção post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante. O referido diploma estabelece que a retirada dependerá da autorização do cônjuge ou de parente maior de idade, respeitada a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive (art. 4º).
No que se refere ao cônjuge ou companheiro supérstite, sua legitimidade é prioritária, desde que estivesse convivendo com o falecido ao tempo do óbito, em consonância, inclusive, com a regra do que lhe confere preferência para a nomeação do inventariante (CPC, art. 617, I)
Com relação aos demais parentes, observa-se a linha sucessória também, obedecendo à ordem das classes. Somente na ausência de uma classe é chamada a seguinte. Entre os descendentes, os em grau mais próximo excluem os mais remotos. Se houver mais de um parente do mesmo grau, prevalece o entendimento da maioria, e, em caso de empate, a decisão caberá ao juiz. Esse mesmo raciocínio aplica-se às classes sucessórias (CC, arts. 1.833 e 1836, 1.839 e 1.840).
Antes, porém, deve prevalecer quanto à destinação do corpo, a manifestação expressa deixada pela pessoa falecida, seja por testamento, seja por qualquer outra declaração formal. Tal manifestação de vontade somente deixará de ser observada caso contrarie a lei ou as normas sanitárias municipais, hipótese em que cederá lugar à decisão da família, na ordem de legitimidade já mencionada.
Embora o corpo não tenha mais vida, ele mantém relevância no mundo jurídico, pois, apesar de não ser mais sujeito de direitos e participar de qualquer relação jurídica, sobre ele incidem os direitos da personalidade, que se projetam para além da morte. Tais direitos consistem na proteção da dignidade, da integridade dos restos mortais, da memória e da vontade manifestada em vida, cabendo à família zelar por sua observância e defendê-los, tanto judicial quanto extrajudicialmente.
Assim como ocorre com a pessoa viva, cujos direitos da personalidade podem ser tutelados por meio de medidas inibitórias, reparatórias e sancionatórias, também ao falecido é assegurada proteção equivalente.
O Código Civil prevê que, em caso de violação, estão legitimados a requerer a cessação da ameaça ou da lesão, bem como a reparação de eventuais danos, o cônjuge sobrevivente ou qualquer parente em linha reta, bem como os colaterais até o quarto grau (art. 12, parágrafo único).
Com o falecimento, o corpo deve receber destinação adequada, não podendo ser tratado como objeto de propriedade da família, tampouco permanecer sob sua guarda e posse.
Há procedimentos administrativos a serem observados, cuja definição compete aos familiares, respeitada a ordem de legitimidade anteriormente exposta.
Se o falecimento ocorrer no hospital, a situação é simples: a declaração de óbito será emitida pelo médico assistente, e, na sua falta, pelo médico de plantão.
Por outro lado, se a morte ocorrer em residência, a referida emissão dependerá da causa da morte: a) quando decorrente de doença previamente acompanhada, cabe ao médico particular emitir a declaração; b) em caso de óbito natural sem assistência médica, a respectiva declaração deve ser feita pelo médico do Serviço de Verificação de Óbito – SVO; inexistindo tal serviço, pelo médico de serviço público da localidade (SAMU); c) se a morte for violenta ou suspeita, a Polícia deve ser acionada e o corpo encaminhado ao Instituto Médico Legal – IML, para realização do exame e a emissão da declaração de óbito.
Já nos falecimentos em via pública, é indispensável acionar a Polícia, que providenciará o encaminhamento do corpo para o Instituto de Médico Legal – IML, independentemente da causa morte: natural ou suspeita, para realização do exame cadavérico e emissão da declaração de óbito.
De posse da declaração de óbito, já é possível realizar os procedimentos funerários.
Na sequência, um familiar (cônjuge/companheiro, filho, irmão) ou uma pessoa autorizada deve comparecer ao cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, para a lavratura da certidão de óbito (Lei nº 6.015/73, art. 79), documento essencial para a prática de diversos atos jurídicos posteriores, como: inventário, seguro, benefícios previdenciários, etc.
Importa ressaltar que, caso o falecimento ocorra em local diverso do domicílio do falecido, o sepultamento somente poderá ser realizado mediante certidão de óbito, expedida pelo oficial de registro do lugar do falecimento ou, alternativamente, pelo lugar de residência do “de cujus” (Lei nº 6.015/73, art. 77).
No Brasil, há dois procedimentos funerários: o sepultamento e a cremação.
A regra geral é que o cadáver seja sepultado em cemitério, público ou privado, conforme a disciplina estabelecida pelas leis municipais. O objetivo é proteger a saúde pública, evitando a contaminação do solo e das águas subterrâneas, bem como controlar riscos sanitários decorrentes da decomposição.
Excepcionalmente, admite-se o sepultamento em propriedade particular, hipótese rara e restrita. Para tanto, é necessário apresentar requerimento formal ao Município, justificando os motivos — como tradição cultural, relevância histórica ou religiosa — e obter autorização expressa da municipalidade, por meio de alvará, acompanhada de licença ambiental e sanitária.
Já a cremação, consistente na incineração do cadáver a fim de reduzi-lo a cinzas, embora ainda represente a exceção, tem sido cada vez mais adotada. Entretanto, trata-se de procedimento mais burocrático que o sepultamento comum, pois envolve exigências médicas, legais e, em determinadas situações, até mesmo judiciais.
De acordo com da Lei nº 6.015/1973, a cremação só poderá ocorrer mediante: a) autorização expressa do falecido, manifestada em vida por testamento ou outro documento formal, ou b) no interesse da saúde pública, devendo o atestado de óbito ser firmado por dois médicos ou por um médico legista. Por outro lado, no caso de morte violenta ou suspeita, a cremação só com autorização judicial, precedida de exame pericial (art. 77, § 2º).
Na ausência de manifestação do falecido, admite-se a cremação com o consentimento do cônjuge ou do parente mais próximo, observada a ordem de legitimidade já exposta. Tal
entendimento decorre da interpretação sistemática dos arts. 12 e 13 do Código Civil.
Essas exigências visam não apenas resguardar a vontade do falecido e da família, mas também garantir que a cremação não comprometa investigações criminais nem contrarie normas sanitárias.
Cumpre salientar que, em se tratando de cemitério público, o jazigo é adquirido junto à municipalidade mediante aforamento perpétuo: instituto que consiste na concessão de áreas públicas destinadas exclusivamente a sepultamentos de corpos ou ossos, formalizado por meio de carta de aforamento. A partir de então, a titularidade é transmitida aos familiares dos concessionários, observada a ordem sucessória legal.
De modo geral, a responsabilidade pela organização, legislação e administração dos cemitérios e serviços funerários é dos municípios, por se tratar de matéria de interesse predominantemente local, conforme dispõe o art. 30, incisos I e V, da Constituição Federal. Cabe-lhes, inclusive, o dever de prestar assistência funeral, especialmente às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.
Nos casos de falecimento de pessoa sem familiares e/ou sem identificação, o corpo deve ser encaminhado ao Instituto Médico Legal -IML para realização de perícia e tentativa de identificação. Após os procedimentos periciais, não havendo reconhecimento ou reivindicação, o Município é responsável pelo sepultamento, que ocorrerá em cemitério público, geralmente em jazigo coletivo, sendo o falecido sepultado na condição de indigente.
Nessa hipótese, não sendo o cadáver reclamado junto às autoridades públicas, em 30 dias, em vez ser sepultado nas condições antes mencionadas, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico (Lei nº. 8.501/1992, art. 2º).
Por fim, tem-se que, uma vez sepultado o falecido, a proteção de seus restos mortais passa a ser assegurada pelo Estado, por meio do Direito Penal, que prevê crimes contra o respeito aos mortos. O Código Penal tipifica condutas, com aplicação de sanção, como: impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária (art. 209); violar ou profanar sepultura ou urna funerária (art. 210); destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele (art. 211); e vilipendiar cadáver ou suas cinzas (art. 212).
Esses crimes são de ação penal pública incondicionada, tendo como titular o Ministério Público. Dessa forma, qualquer violação deve ser comunicada à autoridade policial competente, que instaurará o inquérito e realizará as investigações, as quais, concluídas, serão remetidas ao órgão ministerial para eventual propositura da ação penal.
Em suma, uma vez recolhido ao sepulcro, o corpo deve permanecer inviolável, não podendo ser perturbado ou desrespeitado sob qualquer circunstância.
A única exceção admissível é a exumação, que pode ocorrer de duas formas. Administrativamente, quando requerida pela família, seja para transferir o corpo a outro cemitério, seja para reduzir os restos mortais e destiná-los a ossuário, respeitado o prazo mínimo de 3 anos, contados da data do óbito. Judicialmente, por determinação da autoridade competente, em geral para fins de perícia médico-legal (investigação criminal, exame de paternidade, identificação de restos mortais, entre outros).
Com a exumação do corpo, é possível ainda realizar a cremação dos ossos, sem, necessariamente, ter que alterar o registro de óbito, ficando apenas registrado tal procedimento no cemitério onde realizou o ato. Apesar de ser essa a praxe, não concordamos com ela, por entendermos que deveria sim ser modificado o registro de óbito, para indicar que esse ato foi feito, refletindo precisamente o destino final dos restos mortais do falecido.
Fisicamente, o corpo do falecido se deteriora com o tempo; contudo, sua memória permanece viva. Esta deve ser resguardada e respeitada, como expressão da dignidade da pessoa humana, valor que não se extingue com a morte.
A proteção à memória e ao respeito devido aos mortos incumbe não apenas ao Estado, que a assegura por meio da ordem jurídica, mas também à famíliae à sociedade, que têm o dever ético e moral de preservá-la.
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