Filiação socioafetiva e suas consequências jurídicas

A filiação socioafetiva caracteriza-se pelo vínculo de afeto e pelo reconhecimento social da relação familiar,  independentemente da existência de laços biológicos ou da formalização por meio de  adoção.

Seu reconhecimento resulta da evolução do conceito de família, especialmente após a Constituição da República de 1988, que deu relevância a afetividade e consagrou a pluralidade de modelos familiares,  conferindo-lhes especial proteção estatal (art. 226, §§ 3º e 4º).

O Código Civil, em harmonia com esse entendimento, positivou o direito em seu art. 1.593, ao estabelecer expressamente que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consaguinidade ou outra origem.

A jurisprudência pátria consolidou o reconhecimento da filiação socioafetiva, quando presentes dois elementos fundamentais: a) a vontade clara do pai ou da mãe socioafetiva de reconhecer aquele filho como seu; e b) a demonstração da posse de estado de filho, maneira como o filho era tratado, se a comunidade ou a família reconheciam a filiação. (STJ –  REsp 1328380/MS ).

A posse de estado de filho, segundo a doutrina, exige a presença de três requisitos: a) nome  – uso do nome da família; b) trato –  tratamento recíproco como pai/mãe e filho; c) fama  – reconhecimento social desse vínculo.

O real valor jurídico está na verdade afetiva e jamais sustentada na ascendência  genética, porque essa, quando desligada de afeto e da convivência, apenas representa um efeito da natureza, quase sempre fruto deum indesejado acaso. Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca quiseram exercer as funções de pai ou de mãe.[1]

Não há dúvida de que, na contemporaneidade, o Direito não pode se afastar da realidade fática, sobretudo da centralidade da afetividade na constituição dos vínculos familiares. Todavia, o reconhecimento da filiação socioafetiva exige cautela redobrada, pois não basta a mera presença de atos de cuidado, sustento ou convivência. O elemento decisivo é a manifestação clara, pública e inequívoca da vontade de assumir a condição de pai ou mãe, acompanhada do efetivo reconhecimento social dessa relação.

Assim, não se satisfaz a configuração da socioafetividade com a simples prova de auxílio material, da prestação de educação ou da guarda do menor, ainda que permeada por certo afeto. É necessário que a relação se projete para além da intimidade doméstica, alcançando a esfera social e familiar de modo a evidenciar que todos – parentes, comunidade e o próprio filho – reconhecem naquela convivência não apenas carinho ou proximidade, mas verdadeira relação de paternidade ou maternidade, inclusive com o chamamento recíproco pelos nomes de “pai” e “filho”.

O reconhecimento da filiação socioafetiva surgiu, inicialmente, como instrumento de proteção da criança e do adolescente, visando impedir que a estabilidade do vínculo familiar fosse manipulada ao bel-prazer de quem, em um primeiro momento, assumira a condição de pai ou mãe. Era comum, por exemplo, que o companheiro realizasse a chamada “adoção à brasileira” em relação ao filho da esposa, mas, diante da ruptura conjugal, buscasse posteriormente desvincular-se da paternidade, como se esta fosse mera conveniência circunstancial.

Do mesmo modo, não raras vezes, após anos de convivência, alguns pais biológicos, ao descobrirem a ausência de vínculo genético, ingressavam em juízo com ações negando a paternidade, na tentativa de romper laços já solidificados pelo tempo e pela convivência afetiva, como uma espécie de retaliação ao cônjuge infiel.

Hoje, entretanto, a evolução doutrinária e jurisprudencial impõe limites a esse tipo de comportamento. A filiação socioafetiva, uma vez consolidada, adquire força própria, fundada no afeto, na posse do estado de filho e, sobretudo, no decurso do tempo, que atua como elemento estabilizador e legitimador do vínculo.

Por outro lado, a filiação socioafetiva deixou de ser apenas um instrumento de defesa da criança e do adolescente, evoluindo para o reconhecimento pleno de vínculos afetivos que se enquadrem nas situações previstas pela jurisprudência e pela doutrina. Esse avanço possibilitou, inclusive, a alteração do registro civil, conferindo origem a uma nova situação jurídica de filiação.

Embora tal evolução seja louvável e represente inegável conquista no campo da proteção familiar, impõe-se redobrada atenção, justamente porque a modificação do estado de filiação — direito da mais alta relevância e de natureza personalíssima — não pode ser tratada com superficialidade, exigindo criteriosa análise das circunstâncias de cada caso concreto.

Esse direito pode ser buscado pelo filho tanto em vida do pai ou da mãe, quanto após o seu falecimento, sendo imprescindível, em qualquer hipótese, a comprovação inequívoca da filiação socioafetiva.

Uma vez reconhecida a filiação socioafetiva, impõe-se, como consequência lógica e necessária, a retificação do registro civil, a fim de que este reflita, com exatidão, a realidade jurídica e afetiva consolidada, garantindo-se a plena eficácia do vínculo estabelecido e a segurança das relações familiares dele decorrentes.

Reconhecida, pois, a filiação sociafetiva, são rompidos os vínculos com o pai biológico, que não é mais ungido à prestação alimentar, à transmissão hereditária em relação ao filho biológico, uma vez que este estabeleceu vínculo sócio afetivo com outrem, o pai socioafetivo.[2]

Isso porque, como decidiu o Superior Tribunal de Justiça, esse reconhecimento jurídico sobre a realidade do registro civil, deve ser retificado para que espelhe a fidedigna representação daquela relação de afeto e cuidado (STJ – REsp: 2088791 GO 2023/0126799-2).

A doutrina vem admitindo, entretanto, a possibilidade da multiparentalidade, ou seja, uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles, ou seja, incide a obrigação alimentar e sucessória entre as partes. [3]

Aliás, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060/SC — tema de repercussão geral nº 622 — reconheceu, de forma inequívoca, que a paternidade socioafetiva não impede o reconhecimento simultâneo da filiação biológica, ambos com efeitos jurídicos próprios. Ou seja, o vínculo afetivo e o genético podem coexistir legalmente, preservando-se integralmente os respectivos direitos patrimoniais e extrapatrimoniais.

Uma vez promovida a retificação do registro civil, passando a filiação socioafetiva a ser formalmente reconhecida, a pessoa adquire plena condição de filho para todos os fins, sob a proteção legal e constitucional que assegura aos descendentes, havidos ou não da relação conjugal, igualdade de direitos e qualificações, inclusive quanto aos efeitos sucessórios, em conformidade com o art. 1.845 do Código Civil e o art. 227, § 6º, da Constituição Federal, que expressamente proíbem qualquer designação discriminatória  em razão da origem da filiação.

A filiação socioafetiva, entretanto, não se confunde com a adoção, uma vez que não depende de destituição do vínculo familiar biológico, ou mesmo de procedimento formal e solene. Ela se baseia em uma situação real de afetividade já vivenciada e que pode ser atestada judicialmente ou extrajudicialmente, diretamente nos cartórios de registro civil, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, com voto contundente da Ministra Nancy Andrighi.[4]


[1] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família, 5. ed.  Rio de Janeiro: Forense, 2013, pág. 488.

[2] MALUF, Carlos Alberto Dabus, Curso de Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 527

[3] Idem, ibidem.

[4] STJ – Notícias, 17/8/2025, às 6h55.

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