A literatura interferindo na vida cotidiana

Autor(a): Nélio Silveira Dias Júnior

Data 27/04/2024

Em um dia de semana, de um certo mês, acordei cedo, mais cedo do que o normal – ainda estava escuro, apenas uma barra lá no horizonte querendo clarear – talvez pelas atribulações profissionais que se avizinhavam e se alongariam naquele dia.

Aí, para esperar o tempo passar, fui ler uma crônica de Lygia Fagundes Telles, uma das maiores escritoras brasileiras, com representação significativa no pós-modernismo; muito embora preferisse seus contos.

O título da crônica era “Então, adeus!”.

O episódio narrado pela escritora, aconteceu na Bahia, numa “tarde em que visitava a mais antiga e arruinada igreja”. Ali, tinha encontrado um velhinho, “tão velhinho que mais parecia feito de sopro do que de carne e osso”, que a havia convidado para mostrar preciosidades que se encontravam na sacristia, como, por exemplo, “dois anjos tocheiros esculpidos por Aleijadinho”, o que foi por ela deveras apreciados e, ao final, ficou muito agradecida.

Mas, quando foi se despedir daquele padre velhinho foi surpreendida por ele quando lhe disse: “até logo”, em vez de “então, adeus!”, tendo isso lhe impressionado porque no dia seguinte voltaria para o Rio de Janeiro, “e não tinha nenhuma ideia de voltar tão cedo à Bahia”. Tinha “a mais absoluta das certezas” de que jamais o veria.

Nessa mesma noite “houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo”, ela já se encaminhava para a mesa, “quando de repente alguém tocou no seu ombro, um toque muito leve, e sorria, dizendo-lhe: boa noite”. Ficou muda. “Ali estava aquele de quem horas antes ela havia se despedido para sempre…”

Concluí a minha leitura. O dia raiou, tomei café rápido e fui para o escritório. Lá soube do resultado da decisão judicial de um cliente, bem velhinho – tão velhinho, como disse Lygia Fagundes Telles, em sua crônica, que “mais parecia feito de cinza” – cuja causa havia defendido há muito tempo.

Diante do acontecido, precisava falar com o cliente. Liguei para seu telefone, mas não atendeu. Insisti. Não tive êxito. Pedi, então, a minha assistente para ir na casa dele, dizer-lhe que gostaria de falar sobre o seu processo, urgentemente.

Ao chegar na casa do cliente, a minha assistente o chamou, mas ele não apareceu. Tocou na campainha, e nada. Até que surgiu o neto dele, um garoto de 15 anos, e lhe disse:

– Pois não; a senhora quer falar com quem?

– Com o seu avô, disse a assistente.

Aí o garoto lhe falou:

– Hum, hum… Impossível. Meu avô está em um lugar que não pode falar mais com ninguém.

– Posso voltar outra hora, para tentar falar com ele? Perguntou a assistente.

– Não vai adiantar…

Diante desse diálogo esquisito, a minha assistente voltou ao escritório e me comunicou:

– O senhorzinho morreu.

Puxa vida! Mesmo assim resolvi recorrer da decisão judicial, pagando inclusive as custas.

Dias depois, estava sozinho no escritório, um pouco mais das 18h, minha assistente já tinha ido embora, quando a campainha tocou. Saí da minha sala e me dirigi à recepção e atendi o interfone.

– Alô, deseja falar com alguém? Com o senhor mesmo, meu advogado.

Quando eu olhei para frente, pela porta de vidro, estava ali o velhinho, meu cliente, vestido todo de branco, “parecia feito de teia e de bruma”. Imaginei muita coisa… E ele insistiu: abra a porta. Aí a minha voz sumiu. E eu refletindo: não vou abrir de jeito maneira. Se é o que eu estou pensando, a porta aberta não vai fazer diferença!

Só me lembrava da crônica de Lygia Fagundes Telles.

Até que, de tanto insistir, eu abri a porta, e o cliente entrou. Ele vinha em minha direção e eu recuava; ele dava um passo para frente e eu para traz; até que ele, já aborrecido, falou:

– O que está acontecendo?

– Ah, não sei! Não sei mesmo …

– Diga aí o senhor alguma coisa!

Ele esticou a mão para me cumprimentar e eu a apertei, com tanta força, que deu um grito; aí eu disse, assim pode entrar.

Conversamos um pouco e o mal-entendido foi resolvido.

A literatura interferindo na vida cotidiana.

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