Infância de outrora: relicário de lembranças

Autor(a): Nélio Silveira Dias Júnior

Data: 23/03/2024

Num passado distante, lembramos da infância, momento em que somos guiados pela ingenuidade e curiosidade, vivendo o mundo da fantasia e da criatividade.

Nessa época, tudo é grandioso. As pequenas coisas se tornam mágicas. As brincadeiras simples e inocentes são as melhores. Recordações que ficam guardadas para sempre.

A nossa infância foi dos tempos antigos, vivida em Natal, no Bairro Morro Branco, assim chamado pelos moradores, que fica no quarteirão entre as Avenidas Rui Barbosa, Xavier da Silveira, Alexandrino de Alencar e a Bernardo Vieira.

Na década de 70, não tinha a tecnologia de hoje, os avançados jogos eletrônicos, as várias atrações televisivas (Netflix, Globoplay), mas tinha algo que o tempo torna inesquecível: a amizade, a vizinhança, a solidariedade.

Brincar na rua com os amigos era a maior diversão. Subíamos em árvore, andávamos de bicicleta, tomávamos banho de chuva, escalávamos os muros das casas; esse ato, às vezes, era o meio de locomoção de ir de uma rua para outra. Era uma curtição!

A coletividade interessava mais; diferente da individualidade que impera atualmente.

A insegurança não existia, pelo menos na nossa imaginação. A criminalidade era baixa. Em Natal, nos anos 70, o bandido famoso e temido era “Brinquedo do Cão”, que assaltava as casas, sem violência às vítimas. Era conhecido por fugas mirabolantes da Penitenciária João Chaves, como, por exemplo, uma que de lá saiu vestido de mulher pela porta da frente. Era difícil a sua captura pela proteção que tinha dos moradores de seu bairro, a quem distribuía benesses, oriundas dos furtos.

Nos bairros, a solidariedade reinava; a vizinhança era participativa. O desprezo e a indiferença hodierna não tinham vez.

Lembramos dos jogos de futebol, que faziam a nossa alegria ao cair da noite. Um vizinho, o Engenheiro Civil Miguel Hélio, abria a sua casa para a meninada jogar. Quanta diversão ele nos proporcionou, sem pedir nada em troca, a não ser a de ver a felicidade da criançada.

Aí logo vem a lembrança do poema de Fernando Pessoa: “Quando as crianças brincam/ E eu as oiço brincar/ Qualquer coisa em minha alma/Começa a se alegrar.”

Na rua Antônio Lira, tinha quadra de tênis, onde jogávamos e participávamos de campeonato. O professor era Carlos Ferreira. Tudo proporcionado pelo proprietário do local, o Engenheiro Civil Fernando Garibaldi. O incentivo a esse esporte vinha dele, que ali também jogava, na maioria das vezes, com seu amigo Daladier Cunha Lima. Mais tarde, o destino fez com que eles vissem os seus filhos jogarem tênis, disputando finais de torneio do Estado e do Norte-Nordeste.

Também lembramos das festas de aniversários, repletas de alegria e encantamento. O bolo, feito com esmero da dona da festa, ou encomendado a famosa Dalvinha, doceira do bairro, com velas e bolas de encher coloridas. Ao apagar das luzes, no momento dos parabéns, a diversão era, com o palito, estourá-las, para nossa alegria e raiva da anfitriã.

Infância memorável; momentos inesquecíveis.

Além disso, a infância de antigamente está repleta de cheiros e sabores. O cheiro da terra molhada depois da chuva. O cheiro das flores do jardim de Candinha Bezerra. O sabor do doce de goiaba da casa de Zuleide Maciel. O gosto da fruta colhida diretamente do pé: caju, goiaba, graviola. Sem esquecer do gosto da água de coco, da casa de Nadja Dias, tirada pelo vigia seu Chico. Alegria da meninada, depois do jogo de futebol.

O banho de piscina na casa de Luluca Paiva era também diversão. A algazarra era grande, mas nada chateava a viúva de Luciano Barros. A satisfação era maior.

Hoje, a rua não faz mais parte da diversão; a solidão dos jogos eletrônicos é a melhor “opção”! Raramente se conhece a vizinhança, nem com os vizinhos se fala mais.

Doença era rara, mas quando se adquiria uma gripe, por menor que fosse, logo se recebia a visita do médico pediatra Marcone Furtado, morador do bairro, que nos assistia, com humanidade e carinho, na nossa própria casa.

Isso não existe mais; a solidariedade ficou para trás.

Essas lembranças da infância – que nos transportam para um tempo em que tínhamos a despreocupação e a liberdade de apenas ser e viver o presente – são guardadas na caixa da saudade, para não nos esquecermos do encantamento e a leveza daquele momento, de modo a alimentar a nossa alma, diante das adversidades da vida adulta.

Voltar