Obra de arte: conexão afetiva e silenciosa

Autor(a): Nélio Silveira Dias Júnior

Data: 09/12/2023

A obra de arte, principalmente a representativa (pintura, escultura, fotografia,), desempenha um papel fundamental na identificação da cultura e história de um povo. Expressa valores e tradições de uma sociedade.

Ou seja: a arte reflete a visão de mundo.

A obra de arte pode ser fonte de inspiração e comunicação, oferecendo espaço para explorar a imaginação, desempenhando papel significativo na jornada pessoal e na forma como alguém se percebe, e se relaciona com o meio social.

Mas não é só isso.

Uma obra de arte tem valor inestimável, para quem a sente, e com ela estabelece conexão íntima, pessoal e afetiva, independentemente do artista e de seu prestígio. Para o amante daquela arte, não há obra boa ou ruim, é simplesmente arte: criação de forma, ideias e emoções.

O significado da obra de arte, o artista sugere, porém, ao ser contemplada, cada um imprime o seu, sem se preocupar com acerto. Essa é a beleza da arte!

Ao longo das diferentes fases da vida, as pessoas podem se conectar emocionalmente com certas obras de arte que as acompanham e se tornam testemunhas silenciosas de suas próprias experiências.

Lembro-me, especificamente, de uma obra de arte, que ficava no meu quarto. Mostrava o jovem montado a cavalo, pulando o tronco derrubado de árvore, arrebanhando cabras, com uma casa no alto da colina e fonte d’água espelhando bela floresta.

Aparentemente, simples. Mas não para mim.

Essa obra me acompanhou desde tenra idade. Foi colocada no meu quarto de frente à minha cama pela minha mãe, quando eu era criança, como simples objeto de decoração. Quando casei, saí da casa dos meus pais e perdi o contato com aquele quadro. Nunca mais o vi. Voltei algumas vezes ali e não o encontrei, ou não mais o notei… O momento não era mais o mesmo!

Nas minhas angústias, era olhando para aquela obra que me consolava; na alegria, com ela repartia. Nas noites mal dormidas era com ela que dialogava. Essa conversa era silenciosa, contemplativa, apenas. Mas, acalentava meu coração. Dormindo sozinho no meu quarto, ela era a minha companhia.

A obra de arte é um exemplo do poder em estabelecer conexão emocional e oferecer uma forma de comunicação.

O jovem galopando pelo tronco derrubado tangendo as cabras pode representar a superação de desafios ou obstáculos na vida, ou, até mesmo, transmitir mensagens de coragem e determinação.

Através do olhar e da imersão na obra de arte, é possível estabelecer uma ligação imaginária com as figuras ou elementos representados na imagem.

Essa cena, por exemplo, na minha infância, simbolizava a vitalidade, remetendo a momentos de energia e entusiasmo.

A imagem da floresta com o jovem montado a cavalo, ultrapassando o que está à frente, evocava, com outra perspectiva no olhar, a sensação de aventura e liberdade.

Era a chegada da adolescência, o despertar para vida. Período de transformações. A irreverência e irresponsabilidade juvenis, com mais erros do que acertos, foram, de perto, testemunhadas por aquela obra.

No início da fase adulta, uma das decisões importantes da minha vida, como a profissão a ser escolhida, foi com aquela obra de arte primeiramente compartilhada, talvez aconselhada ou incentivada. Aquela imagem, para muitos, não dizia nada; no entanto, para mim, dizia algo: ter objetivo; suplantar as adversidades; caminhar firme; nunca retroceder; ousadia e destemor.

A advocacia e aquela imagem, de certa forma, têm tudo a ver…

E o cavalo, que o menino montava, não estava ali por acaso. Para mim, denotava que, se estou só, o objetivo é mais difícil de ser alcançado, e sua dificuldade, se pode ser um limitador, uma companhia ajuda a transpor os troncos caídos vida afora.

Tudo ali tinha significado.

Recentemente, voltei a me lembrar dessa tela, 25 anos depois de ter perdido contato. A sua “curadora”: minha mãe. Perguntando a ela sobre seu paradeiro, no primeiro momento, disse não lembrar, nem deu muita importância. Insisti. Aí ela me disse que quando se mudou da sua casa, pegou a tralha toda e levou para a Fazenda. A esperança de resgatá-la ficou distante. Todavia, percebendo a questão sentimental, foi atrás do quadro. Descobriu-se que depois de abandonado em um quarto por anos, foi dado a uma pessoa da região. Esta, sensibilizada, devolveu-o. Assim, recuperei a obra, com sinais de desgaste, consequência do tempo e do abandono.

De tralha, à obra de arte, como sempre foi para mim. Agora, está no meu escritório, para mais uma jornada de vida.

Com a idade mais avançada, aliviado pelo rumo de responsabilidades tomadas, com rugas que refletem as emoções vividas, a visão que repousa em torno do quadro, lapidada pela experiência da vida, é mais serena e pensativa, que logo levou a descoberta: aquela imagem é uma obra inglesa do século XIX.

O original é uma pintura de Edwin Landseer (inglês, 1802-1873): “O Primeiro Salto: Lorde Alexander Russel em seu Pônei Emerald”. Está na Guildhall Art Gallery, Londres. O gravador inglês Charles George Lewis (1808-1880) fez muitas gravuras dessa obra, que ganharam o mundo.

Enfim: a arte é memória, traz lembranças e emoções passadas, e impõe graves desafios para as esperanças do futuro.

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