Famílias e famílias: consequências jurídicas dos novos arranjos familiares sob a ótica do STJ

O que é família? O mundo moderno trouxe tantas mudanças nas relações sociais e particulares que algumas pessoas talvez digam que é mais fácil viver em uma família do que conceituá-la. A visão clássica de entidade familiar, baseada em vínculos biológicos e matrimoniais – na perspectiva adotada pelo Código Civil de 1916, por exemplo –, foi substituída, gradativamente, pelo reconhecimento de novos laços familiares, mais relacionados à afetividade e à ideia de pertencimento entre as pessoas.

Superando o ordenamento jurídico mais antigo, a Constituição Federal de 1988 inovou ao prever novos modelos familiares como a união estável e a família monoparental. A jurisprudência, por sua vez, debruçou-se sobre vários outros arranjos, como a família homoafetiva e a família anaparental – aquela na qual o grupo familiar não possui pais, mas apenas parentes colaterais, como irmãos.

O conceito de família – especialmente do núcleo familiar, formado por laços mais próximos – tem uma série de implicações jurídicas, repercutindo em questões como legitimidade na sucessão, direitos previdenciários e a ideia de bem de família para efeito de impenhorabilidade. Em vários desses temas, coube ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestar a respeito da amplitude dos laços familiares e, em especial, sobre os seus efeitos.

Avós no papel de pais

No REsp 1.574.859, a Segunda Turma analisou as relações familiares no âmbito de ação que discutia o direito de avós receberem pensão por morte, após o falecimento do neto que criaram. O objetivo da pensão, segundo os avós, era diminuir as necessidades financeiras decorrentes do óbito.

Em segundo grau, o pedido de pensão foi negado sob o argumento de que a legislação que regulava os benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não previa a hipótese de pensionamento para os avós, mas apenas para o cônjuge ou companheiro, os pais e os filhos menores de idade ou com deficiência.  

Segundo o ministro Mauro Campbell Marques, relator, tanto a Constituição de 1988 quanto o Código Civil de 2002 transformaram o conceito de família e deram relevância ao princípio da afetividade, por meio do qual “o escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social para a realização das condições necessárias ao aperfeiçoamento e ao progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto”.

Para o ministro, era incontroverso que os avós ocuparam papel semelhante ao dos genitores desde que o neto tinha dois anos de idade, em virtude da morte dos pais biológicos, além de ter ficado comprovada a dependência econômica dos avós em relação ao segurado falecido. Na visão do relator, não se tratava de uma hipótese de ampliação do rol legal de dependentes legitimados a receber o benefício do INSS, mas de reconhecimento de quem efetivamente ocupou a posição de pais na vida do segurado.  

“Acredito que o Poder Judiciário, em observância à garantia contida no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, não pode deixar de apreciar os valores de família, para serem aplicados ao caso concreto. Seria negar a realidade e constranger pessoas integrantes da relação jurídica parental, negando-lhes direitos sociais em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa humana”, afirmou o relator.

A formação de entidade familiar a partir da convivência entre avós e netos também foi ressaltada pela Quarta Turma em processo sobre a possibilidade de concessão de guarda em favor dos ascendentes. No caso, entendendo ser viável o deferimento da guarda, o ministro Luis Felipe Salomão apontou que os avós buscavam apenas a regularização de situação existente desde o nascimento da criança, quando ambos já exerciam as funções típicas dos pais, com a concordância dos genitores.

“O que deve balizar o conceito de ‘família’ é, sobretudo, o princípio da afetividade, que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”, afirmou o ministro, citando doutrina sobre o tema (processo sob segredo judicial).

Irmãos solteiros também são família

Em caso mais antigo, de 1998,aQuarta Turma reconheceu como moradia familiar – e, portanto, insuscetível de penhora para o pagamento de dívidas, nos termos da Lei 8.009/1990 – uma casa em que moravam apenas irmãos solteiros.

Ao manter a decisão de penhora, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) havia entendido que a Lei 8.009/1990 tornou impenhorável o imóvel classificado como próprio do casal ou da entidade familiar. Para o TJSP, os irmãos não formavam entidade familiar constitucionalmente protegida, que seria aquela constituída por união estável entre homem e mulher ou formada pelos pais e seus descendentes.

Em seu voto, o ministro Ruy Rosado de Aguiar (falecido) apontou que a proteção estabelecida pela Lei 8.009/1990 se estende também aos filhos solteiros que continuam residindo no mesmo imóvel que antes era ocupado pelos pais.

Para Ruy Rosado, esses filhos são remanescentes da família, entendida como o grupo formado por pais e filhos, de modo que os descendentes passam a constituir uma nova entidade familiar ao permanecerem juntos na mesma casa.

“Se os três irmãos são proprietários de um apartamento e ali residem, esse bem está protegido pela impenhorabilidade, pois a alienação forçada significará a perda da moradia familiar”, afirmou (REsp 159.851).

Na esteira desse precedente histórico, o STJ editou, em 2008, a Súmula 364, segundo a qual o conceito de bem de família, para efeito de impenhorabilidade, abrange também o imóvel de propriedade de pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Uma família. Ou duas?

Uma situação peculiar enfrentada pelo STJ começou quando o titular de seguro de vida designou sua companheira como beneficiária, enquanto ainda era casado com outra mulher. Com o falecimento do titular sem que houvesse a separação civil, a companhia de seguros ingressou com ação de consignação de pagamento, por ter dúvidas sobre qual das duas seria legitimada para receber a indenização securitária.

Em segundo grau, o tribunal confirmou a sentença que reconheceu à companheira o direito de receber o seguro, sob o entendimento de que, embora não tenha sido comprovada a convivência do segurado com a concubina na mesma residência, houve demonstração de que eles mantinham relação estável, tendo inclusive filhos comuns.

Relator do recurso da esposa, o ministro Aldir Passarinho Junior (aposentado) comentou que, apesar de constituir relação com a companheira, o falecido se manteve vinculado ao lar conjugal, permanecendo na convivência da esposa e dos outros cinco filhos tidos no matrimônio. “Na realidade, a situação era de quase uma bigamia, no sentido leigo da palavra”, completou.

Para o ministro, ao mesmo tempo em que era necessário proteger os direitos da esposa, também era o caso de reconhecer a estabilidade da relação concubinária, a qual, segundo o relator, também merecia amparo, inclusive nos termos do artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição.

Como consequência, o relator deu parcial provimento ao recurso para destinar à companheira metade da indenização securitária, com o pagamento da metade restante à esposa e aos filhos tidos durante o casamento civil (REsp 100.888).

A família que nasce entre pessoas do mesmo sexo

Em dois precedentes históricos, ambos sob segredo de justiça, o STJ reconheceu a possibilidade de que famílias fossem constituídas a partir do casamento ou da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Em relação ao casamento, a tese foi fixada pela Quarta Turma do STJ em 2011. Relator do caso, o ministro Luis Felipe Salomão destacou à época que, a partir da Constituição de 1988, inaugurou-se uma nova fase do direito de família, “baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado ‘família'” – devendo todos esses arranjos, segundo o ministro, receber a proteção do Estado.

Na visão do relator, como é por meio do casamento civil que o Estado protege a família, não seria possível negar o matrimônio a nenhuma família que optasse pelo instituto, independentemente da orientação sexual das pessoas envolvidas, “uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto”.

A entidade familiar formada com os sogros

Outro aspecto do conceito de família analisado pelo STJ foi sua desvinculação da ideia de habitação conjunta. Reforçando os princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade, no REsp 1.851.893, a Terceira Turma considerou como parte da entidade familiar os sogros de uma devedora, os quais moravam em residência emprestada por ela, e enquadrou o imóvel como bem de família.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) havia entendido que a devedora, ao emprestar o imóvel aos sogros e optar por morar em apartamento alugado, deixou de ter direito à impenhorabilidade.

Segundo o relator do recurso no STJ, ministro Marco Aurélio Bellizze, o fato de o imóvel ter sido emprestado aos sogros não retira a sua impenhorabilidade, tendo em vista que o objetivo do bem continuava sendo abrigar a entidade familiar.

O ministro destacou que, sob o prisma da solidariedade social, não apenas o imóvel habitado pela família nuclear é passível de proteção como bem de família, mas também o local em que reside a família extensa. A ideia, de acordo com Bellizze, é que haja respeito aos laços afetivos e ao cuidado mútuo estabelecido entre os integrantes da família.

“Ademais, caso se adotasse entendimento diverso, bastaria à proprietária retomar o seu imóvel, despejando os atuais moradores e passando a nele residir, para que, então, fosse o bem reconhecido como de família e evidenciada a sua impenhorabilidade, em nítida contrariedade aos princípios da efetividade e da proteção à entidade familiar”, concluiu o ministro.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1574859REsp 159851REsp 100888REsp 1851893

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