No curso do processo penal, como deve se comportar o corréu delator.

Nélio Silveira Dias Júnior

Advogado

 

Em qualquer fase da persecução penal, o investigado pode fazer colaboração premiada, de forma efetiva e voluntária, colaborando com a investigação e com o processo criminal, em troca de redução da pena ou perdão judicial, nos termo da Lei nº. 12.850/2013 (arts. 4º a 7º).

Todavia, quando isso acontece o corréu colaborador, como tem proclamado o Supremo Tribunal Federal,  deve ser reconhecido e tratado em simetria com o assistente de acusação: só pode se manifestar ou ser ouvido em Juízo antes da defesa, como faz a acusação, sob pena de comprometer o devido processo legal (CF, art. 5º, inciso LIV).

Na verdade, o colaborador corréu deve ser ouvido como primeiro ato da instrução, antes, porém das testemunhas de acusação e de defesa, posto que promove maior eficácia às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, considerando que inegavelmente sua colaboração tem natureza acusatória, devendo sujeitar-se à confrontação dos litigantes, viabilizando a produção de contraprova pelos demais réus.

Nesse sentido, decidiu pioneiramente o Juiz Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão, Dr. Luiz Régis Bomfim Filho no Processo n°. 1001831-29.2018.4.01.3700, e merece aplausos.

Também o colaborador premiado se assemelha à testemunha, tanto que, diferentemente dos réus em geral, deve prestar o compromisso de dizer a verdade (Lei nº 12.850/13, art. 4º, § 14), abdicando, portanto, ao direito de silêncio.

Sendo, pois, testemunha de acusação, em nenhuma hipótese o colaborador pode prestar depoimento na ação depois das testemunhas de defesa, sob pena de violação frontal ao art. 400 do CPP.

Acrescenta-se, ainda, que as testemunhas devem prestar seus depoimentos “cada uma de per si, de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das outras” (CPP, art. 210), sendo a incomunicabilidade entre elas regra de observância inexorável (CPP, art. 210, parágrafo único).

Nenhum esforço é necessário para se concluir que,  ouvida de testemunha de defesa, o corréu colaborador, que assume posição de testemunha de acusação por força de regra legal expressa, não pode mais ser ouvido a qualquer título: interrogatório ou reinquirição, porque não só afronta os dispositivos de Lei acima indicados, como traz potencial prejuízo para a defesa, pelo ajuste de versões conforme o estado do processo.

Sabe-se que o art. 196 do CPP faculta ao juiz proceder a novo interrogatório, de ofício ou a pedido das partes. Todavia, o dispositivo perdeu importância com a Lei nº. 11.719/2008, uma vez que o interrogatório passou a ser realizado ao final da instrução processual (CPP, 400), quando o réu já participou de toda a produção da prova, o que não acontecia no sistema anterior, que o interrogatório era o primeiro ato do processo, justificando o preceito legal.

Após o procedimento regular, nada justifica reinquirir o réu, mesmo que haja realizado delação depois do interrogatório, envolvendo outro corréu que tenha sido interrogado, ou ainda que tenha sido intimado e tenha ficado em silêncio, ou seja, nada tenha falado até então.

De fato, se, uma vez intimado o réu (art. 399, CPP), regularmente, ele não comparece à audiência una (art. 400, CPP), não se pode mais falar em um direito futuro à repetição do interrogatório, isto é, a ser exercido em outra fase do processo, tendo em vista, a já superação da etapa procedimental prevista para o exercício da autodefesa, como pondera EUGÊNIO PACELLI OLIVEIRA.[1]

O  exercício desse direito (interrogatório) ocorrerá segundo o devido procedimento legal, e não segundo a vontade exclusiva do réu.

Direito a ser ouvido, sim, mas não quando for conveniente apenas ao acusado (Pacelli).

Igualmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se manifesta no sentido de que não há um direito incondicionado do acusado de escolher o momento mais adequado para falar nos autos escudando-se no direito a autodefesa. O processo não deve estar a serviço de eventuais mudanças ocorridas na estratégia de defesa, mas sim à investigação dos fatos e a equalização jurídica da controvérsia.[2]

A se permitir que o colaborador preste depoimento a seu bel prazer e quando bem lhe aprouver, à revelia do andamento regular do feito, ter-se-ia de possibilitar toda uma nova instrução, inclusive com indicação de novas testemunhas ou outros elementos probatórios e reiteração de todos os interrogatórios, para se assegurar o contraditório real, garantia constitucional inafastável.

Toda essa construção acabou sendo consagrada com o advento da Lei nº. 13.964, de 24/12/2019, que, no seu art. 14,  alterou a Lei nº. 12.850/2013 (colaboração premiada), acrescentando o § 10-A ao art. 4º, estabelecendo que “em todas as fases do processo, deve-se garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou”.

É de se esperar que os julgadores (juízes e tribunais) apliquem esse dispositivo, com o objetivo de robustecer os direitos do acusado, garantindo-o a amplitude da defesa em processo judicial (CF, art. 5º, LV).

De qualquer forma, as defesas devem se preparar para contrariar eventual irregularidade feita pelo colaborador, ainda que sob o manto da busca da verdade real, devendo previamente impugnar o ato e justificar o prejuízo, para, em instância superior, poder arguir a nulidade, sob pena de preclusão.

[1] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal. 13. ed.,  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 394.

[2] STF, AgR HC 138121, Ministro Ricardo Lewandowski, 2ª T., j. 16/10/17, un., DJe 27/10/17. Grifos acrescentados.

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