DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
NÉLIO SILVEIRA DIAS JÚNIOR
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Origem e fundamentação – 3. Conceito – 4. Objeto e hipóteses de cabimento – 5. Outros casos de incidência – 6. Competência – 7. Legitimidade – 8. Procedimento: da ação à decisão – 9. Aspectos controvertidos – 10. Conclusão – 11. Referência bibliográfica.
1. Introdução
A argüição de descumprimento de preceito fundamental é questão pouca explorada, não tendo sido objeto de grandes debates acadêmicos, como era de se esperar, daí o nosso interesse em analisá-la.
Não obstante estar prevista na Constituição Federal (art. 102, § 1º) desde outubro de 1988, somente, em 3/12/99, foi a ação de argüição regulamentada, com a edição da Lei nº 9.882/99.
A matéria, até o presente, não foi, como deveria, digerida pela doutrina nem pelo Supremo Tribunal Federal, a quem cabe apreciar a ação (competência originária). Isso, a primeira vista, em face da noção do que venha a ser a expressão: descumprimento dentro do texto constitucional, diante da similitude com a noção de inconstitucionalidade, embora este termo seja bastante acentuado no direito pátrio, só devendo ser aplicado nas situações delimitadas pela Carta Magna. Ao depois, pela indefinição do que venha a ser preceito fundamental.
Esta é uma tentativa de objetivamente discutir: a origem e a fundamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental, seu conceito, objeto e hipóteses de cabimento. Falaremos, também, sobre o procedimento da ação; a quem cabe apreciá-la, e, ainda, às pessoas que podem propô-la. Discutiremos igualmente os seus aspectos controvertidos. Com isto, se não conseguirmos abordar o tema como um todo, até pela complexidade, pelo menos tentamos trazê-lo ao debate, esclarecendo pontos importantes do instituto legal.
2. Origem e fundamentação
A Constituição Federal, em seu art. 102, § 1º, estabeleceu uma nova forma de controle concentrado de constitucionalidade, ao dispor que compete ao Supremo Tribunal Federal apreciar e julgar a argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista em norma de eficácia limitada, vindo a ser regulamentada com a edição da Lei Federal nº 9.882, de 3/12/99.
Em razão do princípio da subsidiariedade, essa tutela constitucional não será admitida, quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99). Isto quer dizer que a ação só poderá ser proposta quando não for cabível a ação direta de inconstitucionalidade; a ação declaratória de constitucionalidade; o mandado de segurança; a ação popular; o agravo regimental; o recurso extraordinário; a reclamação, ou qualquer outra medida judicial apta a sanar, de maneira eficaz, a situação que cause lesão, como a entende o Excelso Pretório (Informativo nº 243 do STF).
3. Conceito
A argüição de descumprimento de preceito fundamental, para André Ramos Tavares, é ação ou incidente judicial, de competência originária do Supremo Tribunal Federal, que desencadeia o denominado processo objetivo, cujo fundamento é o descumprimento de preceito constitucional que consagra valores basilares para o direito pátrio, descumprimento este perpetrado por ato de natureza estatal, quando direta a modalidade, ou por atos normativos, quando se tratar de argüição na modalidade incidental1.
Esse constitucionalista aponta-a como uma garantia de origem constitucional, de natureza processual, que visa preservar a obediência geral devida às regras e princípios constitucionais que, considerados fundamentais, estavam, de há muito, dentro de um quadro evolutivo, a demandar mecanismo próprio para tanto2.
A criação de um mecanismo específico de proteção quanto a determinados preceitos (os de cunho fundamental) significa, sem dúvida, que se supervalorizam, por via de sua máxima proteção , determinados preceitos. Essa idéia de que há um conjunto de preceitos que merecem proteção mais intensa que os demais preceitos integrantes da Constituição, não é inovadora3.
Conceituado o instituto, ainda que de forma sintética, torna-se imperiosa a definição do que venha ser, dentro do contexto dessa ação, a palavra “descumprimento”, no contexto do direito pátrio.
A noção de descumprimento não deve ser confundida com a de inconstitucionalidade. O termo inconstitucionalidade é de rigor bastante acentuado no Direito pátrio, só devendo ser aplicável nas situações especificamente delimitadas pela Constituição e pelo Supremo Tribunal Federal4.
Já o termo descumprimento, utilizado apenas quando da previsão do instituto da A.D.P.F., é conceito mais amplo, englobando toda e qualquer violação de norma constitucional, ou seja, tanto pode descumprir a Constituição um ato normativo como um ato normativo, nesta última categoria incluídos os atos administrativos, de execução material e, ainda, os atos particulares5.
Ultrapassada essa questão, cumpre conceituar o que é preceito fundamental, para o cabimento da ação constitucional em estudo, a fim de facilitar a sua compreensão, levando em conta que tanto a Constituição Federal de 1988 como a Lei nº 9.882/99 deixaram de fazê-lo.
Até o momento, os Ministros do STF não chegaram a um denominador comum sobre o que entendem por preceito fundamental. Em algumas oportunidades, chegaram a dizer o que não o é, tal como o fizeram na apreciação da questão de ordem da ADPF n 1-RJ, apresentada pelo Relator, Ministro Néri da Silveira, quando o Tribunal não conheceu da argüição de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada pelo PC do B contra ato do Prefeito do Município do Rio de Janeiro que, ao vetar parcialmente, de forma imotivada, projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal – que eleva o valor do IPTU para o exercício financeiro de 2000 – teria violado o princípio constitucional da separação de Poderes (CF, art. 2º). Considerou o colegiado ser incabível, na espécie, a ação, dado que o veto constitui ato político do Poder Público, previsto no art. 1º da Lei n. 9.882/99 (Informativo nº 176/STF).
Enquanto o Supremo Tribunal Federal não pontifica, com precisão, sobre preceito fundamental, transfere a tarefa à doutrina.
No campo da livre apreciação exegética, o professor Cássio Juvenal Faria faz entender que preceitos fundamentais seriam aquelas normas qualificadas, que veiculam princípios e servem de vetores de interpretação das demais normas constitucionais, como, por exemplo, os princípios fundamentais do Título I (arts. 1º ao 4º); os integrantes da cláusula pétrea (art. 60, § 4º); os chamados princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII); os que integram a enunciação dos direitos fundamentais (Título II); os princípios gerais da atividade econômica (art. 170)6.
Por sua vez, o professor Uadi Lammêgo Bulos qualifica como fundamentais os grandes preceitos que informam o sistema constitucional, que estabelecem comandos basilares e imprescindíveis à defesa dos pilares da manifestação constituinte originária, como exemplo, os arts. 1º, 2º, 5º, II, 37, 207, etc.7
Já para o constitucionalista José Afonso da Silva, preceitos fundamentais são aqueles que conformam a essência de um conjunto normativo constitucional. São aqueles que conferem identidade à Constituição. Diferenciam-se dos demais preceitos constitucionais por sua importância, o que se dá em virtude dos valores que encampam e de sua relevância para o desenvolvimento ulterior de todo o Direito8.
Por seu turno, o constitucionalista e Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes aduz que é muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o processo e julgamento da argüição de descumprimento9.
Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional. Assim, ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5º, dentre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4º, da Constituição: o princípio federativo, a separação de Poderes, o voto direto, secreto, universal e periódico e os demais e garantias individuais10.
Por outro lado, a própria constituição explicita os chamados princípios sensíveis, cuja violação pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (CF, art. 34)11, que, segundo ele, poderiam ser incluídos, com também outros não muitos visíveis, mas importante para o sistema jurídico.
4. Objeto e hipóteses de cabimento
Segundo a doutrina dominante, é cabível a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental sob duas modalidades: a) autônoma (direta ou sumária); b) subordinada (equivalência ou equiparação).
A primeira modalidade está disciplinada no art. 1º, caput, da Lei nº 9.882/99, em razão de este diploma dispor que a argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal, proposta perante o Supremo Tribunal Federal, ter por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Diz-se autônoma a ação quando não depender da existência de qualquer outro processo no qual se controverta sobre a aplicação de preceito fundamental12.
A propósito, o professor Pedro Lenza percebe nítido caráter preventivo na primeira situação (evitar) e caráter repressivo na segunda (reparar) lesão a preceito fundamental, devendo haver nexo de causalidade entre a lesão ao preceito fundamental e o ato do Poder Público, de que esfera for, não se restringindo a atos normativos, podendo a lesão resultar de qualquer ato administrativo, inclusive decretos regulamentares13.
A segunda modalidade está prevista no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.882/99, uma vez que ela prevê que caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição de 1988.
Nessa hipótese, deverá ser demonstrada a divergência jurisprudencial (comprovação da controvérsia judicial) relevante na aplicação do ato normativo, violador do preceito fundamental14.
É cabível, então, a argüição de descumprimento de preceito fundamental como incidente em processo já em curso. Isso é assim, por diversas razões.
Há uma argüição incidental, ao lado daquela exercida por ação, porque a controvérsia com relevante fundamento à qual faz menção o inciso I do parágrafo único do art. 1º só pode ser aquela que se apresenta em juízo, e não qualquer controvérsia que se instale entre particulares, não levada necessariamente ao conhecimento da Justiça, ou ainda uma controvérsia doutrinária15.
Confirma esse entendimento o disposto no art. 3º, inciso V, da Lei nº 9.882/99 quando exige que a petição inicial contenha a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.
O ponto central de sustentação da tese, contudo, tem alcance constitucional. É que não poderia haver a criação de uma argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houvesse não o descumprimento de um preceito fundamental, como quer a Constituição, mas sim simples relevância do fundamento de controvérsia instaurada, à margem de qualquer referência a preceito fundamental. Isso equivaleria a cria uma ação absolutamente nova, de competência originária do Supremo Tribunal, sob o manto da argüição. Essa interpretação, que realmente deve ser de pronto afastada, parece reavivar a já repudiada avocatória, e levaria à consideração positiva acerca da inconstitucionalidade do preceito em análise.16
Defende, com proficiência, o professor André Ramos Tavares que se se pretende, realmente, preservar o incidente de inconstitucionalidade a que faz referência o dispositivo, tem-se de interpretá-lo em consonância com a Lei Maior. Assim, a medida se apresenta no inciso I do parágrafo único do art. 1º da Lei da Argüição deve ser considerada como a segunda espécie de argüição, ao lado da primeira, que é sua modalidade por via de ação direta, presente no caput do mesmo dispositivo. Trata-se, pois, do incidente de descumprimento de preceito fundamental, que também se poderia designar como argüição por derivação17.
Sustenta ainda o professor que ao contrário da ação, a argüição incidental tem campo mais restrito, como se verá, já que, além de exigir o descumprimento de preceito fundamental, como não poderia deixar de ser, acresce outra condição: a relevância da questão e, ainda, que o descumprimento origine-se de ato normativo (e não de qualquer ato do Poder Público, como ocorre na modalidade direta)18.
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou, quando o relator da ADInMC 2.231-DF, o então Min. Néri da Silveira, considerou que o parágrafo único do art. 1º, da Lei nº 9.882/99 autorizaria, além da argüição autônoma de caráter abstrato, a argüição incidental em processo em curso, a qual não poderia ser criada pelo legislador ordinário, mas, tão-só, por via de emenda constitucional e, portanto, proferiu voto no sentido de dar ao texto interpretação conforme à Constituição Federal, a fim de excluir de sua aplicação controvérsias constitucionais concretamente já postas em juízo (Informativo do STF nº 253).
Esse procedimento é adotado por diversos constitucionalistas, tais como: Sérgio Resende de Barros e Alexandre de Morais.
Por sinal, Alexandre de Morais afirma que essa hipótese de argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no parágrafo único do art. 1º, da Lei nº 9.882/99, distanciou do texto constitucional, uma vez que o legislador ordinário, por equiparação legal, também considerou como descumprimento de preceito fundamental qualquer controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição19.
Para este estudioso, o legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo Texto Magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição20.
E mais: o texto constitucional é muito claro quando autoriza à lei o estabelecimento, exclusivamente da forma pela qual o descumprimento de um preceito fundamental poderá ser argüido perante o Supremo Tribunal Federal. Não há qualquer autorização constitucional para uma ampliação das competências do STF21.
Adotamos esse entendimento, pois percebemos que a Lei de Argüição, realmente, utilizou-se de manobra, essa é a palavra, para levar ao Supremo Tribunal Federal matéria que o constituinte não agasalhou. Não se discute aqui a utilidade da argüição por equiparação, todavia, para que isso ocorra, há necessidade de alteração do texto constitucional, por emenda, por exemplo.
Há proibição expressa de argüição de descumprimento de preceito fundamental, quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. É o caráter subsidiário do instituto.
O princípio da subsidiariedade exige, no entanto, o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceito fundamental. Caso os mecanismos utilizados, de maneira exaustiva, mostrem-se ineficazes, será cabível o ajuizamento da argüição. Da mesma forma, se desde o primeiro momento se verificar a ineficácia dos demais mecanismos jurisdicional para a proteção do preceito fundamental, será possível que um dos co-legitimados se dirija diretamente ao STF, por meio de argüição de descumprimento de preceito fundamental (por exemplo: ADPF nº 54 – questão de ordem – aborto de feto anencéfalo)22.
Não é demais ressaltarmos que, na visão de Alexandre de Morais, em face do art. 4º, caput e § 1º, da Lei nº 9.882/99, que autoriza a não admissão da argüição de descumprimento de preceito fundamental, quando não for o caso ou quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade, foi concedida certa discricionariedade ao
Supremo Tribunal Federal, na escolha das argüições que deverão ser processadas e julgadas, podendo, em face de seu caráter subsidiário, deixar de conhecê-las quando concluir pela inexistência de relevante interesse público, sob pena de tornar-se uma nova instância recursal para todos os julgados dos tribunais superiores e inferiores23.
Dessa forma, entende o referido constitucionalista que o STF poderá exercer um juízo de admissibilidade discricionário para a utilização desse importantíssimo instrumento de efetividade dos princípios e direitos fundamentais, levando em conta o interesse público e ausência de outros mecanismos jurisdicionais efetivos24.
Acrescenta ele ainda que essa discricionariedade concedida ao Supremo Tribunal Federal decorre do fato de que toda Corte que exerce a jurisdição constitucional não é somente um órgão judiciário comum, mas sim órgão político diretivo das condutas estatais, na medida em que interpreta o significado dos preceitos constitucionais, vinculando todas as condutas dos demais órgãos estatais e como tal deve priorizar os casos de relevante interesse público25.
Como ressalta Bernard Shwartz, ao analisar esse poder de escolha da Corte Suprema norte-americana, o seu poder facultativo de determinar os casos em que ela própria pode julgar resultou no fato de que ela deixou de ser simplesmente um órgão judiciário comum. É um tribunal de recurso especial, apenas para a solução de questões consideradas como envolvendo um interesse público substancial e não os interesses exclusivos de algumas pessoas privadas26.
Lawrence Baum informa que a Suprema Corte norte-americana julga somente uma minúscula proporção dos casos que chegam dos tribunais federais e estaduais. Mesmo dentro do sistema de tribunais federais, a Corte julga menos de um por cento dos casos de que tratam os tribunais distritais27.
A par dessa informação, vislumbramos que a Ordem Constitucional brasileira teria que ser alterada, a fim de desafogar o Supremo Tribunal Federal, para que este Excelso Pretório possa se dedicar mais às questões constitucionais relevantes, privilegiando, com isso, a ação de descumprimento de preceito fundamental, que anda esquecida no nosso ordenamento jurídico, ou melhor, perdendo a sua finalidade precípua, qual seja, da defesa dos preceitos fundamentais da Constituição Federal.
5. Outros casos de incidência
O primeiro que poderíamos assinalar é o direito pré-constitucional.
A Lei nº 9.882/99 disciplinou que caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo (federal, estadual ou municipal) anteriores à Constituição de 1988 (art. 1º, parágrafo único, inciso I).
Para o Ministro Gilmar Mendes a lei que disciplina a argüição de descumprimento de preceito fundamental estabeleceu, expressamente, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito pré-constitucional com norma da Constituição Federal28.
Assim, toda vez que se configurar controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito federal, estadual ou municipal anteriores à Constituição de 1988, em face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitimados para ADin propor argüição de descumprimento29.
Também essa solução vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo Supremo Tribunal Federal, com eficácia geral e efeito vinculante30.
Isto é assim porque é sabido e ressabido que a Ação Direta de Inconstitucionalidade não é meio hábil para expurgar do sistema jurídico leis ou atos normativos viciados quando forem editados antes da Constituição Federal de 1988.
O segundo caso que poderíamos citar é o controle direito de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal.
A Carta Magna atual além de conferir ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, estabeleceu que compete a esta Excelsa Corte processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (art. 102, I, “a”, primeira parte).
Em outra oportunidade, fixou a Constituição Federal que cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (art. 125, § 2º).
Tal como anotado, a Constituição de 1988 autorizou o constituinte estadual a instituir o controle abstrato de normas de direito estadual e municipal em face da Constituição estadual. Subsistia, porém, uma ampla insegurança, em razão da falta de um mecanismo expedito de controle de constitucionalidade. Deve-se observar, outrossim, que, dada a estrutura diferenciada da federação brasileira, algumas entidades comunais têm importância idêntica, pelo menos do prisma econômico e social, à de muitas unidades federadas, o que conferiria gravidade à ausência de controle normativo eficaz31.
A Lei n. 9.882, de 1999, veio, em boa hora, contribuir para a superação dessa lacuna, contemplando expressamente a possibilidade de controle de constitucionalidade do direito municipal no âmbito desse processo especial32.
Ao contrário do que se possa supor, não será necessário que o Supremo Tribunal Federal aprecie as questões constitucionais relativas ao direito de todos os municípios. Nos casos relevantes, bastará que decida uma questão-padrão com força vinculante33.
O terceiro caso que poderíamos destacar é a declaração de constitucionalidade do direito estadual e municipal.
A Carta Magna de 1988 no momento em que conferiu ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, estabeleceu que compete a essa Corte processar e julgar, originariamente, também, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (art. 102, I, “a”, segunda parte). Com isto, deixou de albergar ao direito estadual e municipal.
Agora, em face da Lei nº 9.882/99 que previu a possibilidade de argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo estadual ou municipal, é possível pleitear perante o Supremo Tribunal Federal a obtenção da declaração de constitucionalidade a esse respeito.
Pontifica o Ministro Gilmar Mendes que poderá ocorrer a formulação de pleitos com o objetivo de obter a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, toda vez que da controvérsia judicial instaurada possa resultar sério prejuízo à aplicação da norma, com possível lesão a preceito fundamental da Constituição34.
De certa forma, a instituição da argüição de descumprimento de preceito fundamental completa o quadro das ações declaratórias, ao permitir que não apenas o direito federal, mas também o direito estadual e o municipal possam ser objeto de pedido de declaração de constitucionalidade35.
O quarto caso que poderíamos relacionar diz respeito a lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial.
Essa hipótese de incidência foi relacionada pelo Ministro Gilmar Mendes.
Defende esse constitucionalista que pode ocorrer lesão a preceito fundada em simples interpretação judicial do texto constitucional. Nesses casos, a controvérsia não tem por base a legitimidade ou não de uma lei de um ato normativo, mas se assenta simplesmente na legitimidade ou não de dada interpretação constitucional. No âmbito do recurso extraordinário, essa situação apresenta-se como um caso de decisão judicial que contraria diretamente a Constituição (art. 102, III, “a”)36.
Não parece haver dúvida de que, diante dos termos amplos do art. 1º da Lei n. 9.882, de 1999, essa hipótese poderá ser objeto de argüição de descumprimento – lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público -, até porque se cuida de uma situação trivial no âmbito do controle de constitucionalidade difuso37.
Assim, ato judicial de interpretação direta de um preceito fundamental poderá conter uma violação da norma constitucional. Nessa hipótese, caberá a propositura da argüição de descumprimento para evitar a lesão a preceito fundamental resultante desse
ato judicial do Poder Público, nos termos do art. 1º da Lei n. 9.882/9938.
O quinto caso que poderíamos relacionar é o de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal.
Essa hipótese de incidência também é defendida pelo Ministro Gilmar Mendes.
Uma decisão que, sem fundamento legal, afete situação individual revela-se igualmente contrária à ordem constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação39.
Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes e que a decisão judicial deve observar a Constituição e a lei, não é difícil compreender que a decisão judicial que se revela desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos o princípio da legalidade40.
Na há dúvida de que essa orientação prepara algumas dificuldades, podendo converter a Corte Constitucional em autêntico Tribunal de revisão. É que, se a lei deve ser aferida em face de toda a Constituição, as decisões hão de ter a sua legitimidade verificada em face da Constituição e de toda a ordem jurídica. Se se admitisse que toda decisão contraria ao direito ordinário é uma decisão inconstitucional, ter-se-ia de acolher, igualmente, que todo e qualquer recurso constitucional interposto contra decisão judicial é ilegal41.
Certamente, afigurar-se-ia extremamente difícil a aplicação desse entendimento, entre nos, no âmbito do recurso extraordinário. O caráter acendradamente individual da impugnação, a fragmentariedade das teses apresentadas nesse processo e a exigência estrita de prequestionamento contribuíam para dificultar a aplicação da orientação acima desenvolvida no âmbito do recurso extraordinário. A argüição de descumprimento de preceito fundamental vem libertar o questionamento da decisão judicial concreta dessas amarras42.
6. Competência
É competente para apreciar a argüição de descumprimento de preceito fundamental o Supremo Tribunal Federal, na forma da lei, segundo dispõe o art. 102, § 1º, da Constituição Federal.
A lei federal a que se refere o dispositivo constitucional é a de nº 9882/99, que, por sua vez, prescreve que a argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição em vigor será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público (art. 1º).
E acrescenta ainda que caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição de 1988 (parágrafo único, art. 1º).
Lembra Pedro Lenza que, de maneira inovadora, a nova lei atribuiu competência originária ao STF para apreciar não só a lesão ao preceito fundamental resultante de ato do poder público, como verdadeiro controle concentrado de Constitucionalidade de leis e atos normativos, mas também os federais, estaduais, os municipais e atos anteriores à constituição, lesionadores de preceitos fundamentais43.
7. Legitimidade
Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 2º, I, da Lei nº 9.882/99), quais sejam: a) o Presidente da República; b) a Mesa do Senado Federal; c) a Mesa da Câmara dos Deputados; d) a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; e) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; f) o Procurador-Geral da República; g) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; h) partido político com representação no Congresso Nacional; g) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (art. 103, incisos I a IX, da Constituição Federal).
Andou bem o legislador, na visão de André Ramos, em seguir a estrutura própria da ação direta de inconstitucionalidade, já que, por se tratar de processo objetivo, não haveria razão ou justificativa para, na argüição autônoma, pretender diminuir o rol de legitimados ativos ou, pelo contrário, alargá-lo em alguns de seus pontos44.
É importante salientarmos que no caso da argüição incidental, qualquer pessoa interessada (envolvida em processo judicial) pode submeter a questão constitucional fundamental diretamente ao Supremo Tribunal, a partir de seu processo originário, mesmo após o desastroso veto presidencial. Essa medida já representa significativo alargamento democrático da legitimidade para a provocação direta do Supremo Tribunal45.
Tem-se este panorama porque a legitimidade para a propositura da argüição incidental, por obvio, não poderia ser idêntica aquela prevista para modalidade direta, sob pena de ineficácia absoluta da primeira. Tal interpretação seria absurda e totalmente descabida. Se se está de acordo acerca da existência de uma segunda modalidade, é evidente que não poderá ela ser eclipsada pela argüição direta, reduzida que estaria a um “sem sentido” normativo46.
Contudo, no julgamento da ADPF 11-SP, proposta por pessoa não elencada no rol do art. 103 da Constituição Federal, o relator, Min. Sydney Sanches, decidiu por seu arquivamento baseado justamente no art. 2º, I, da Lei da Argüição, que só atribui legitimidade aos mesmos legitimados para ação direta de inconstitucionalidade.
Esse posicionamento é no nosso sentir o mais acertado, conforme já dissemos alhures. No entanto, só o trouxemos a exame para, não só informar ao leitor, como também para fomentar a discussão, objetivo maior deste ensaio.
Igualmente acertado, em que pese as opiniões em contrário, foi o veto do Presidente da República ao inciso II do art. 2º da Lei nº 9.882/99, que admitia a propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental por qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público. Do contrário, poder-se-ia afetar o funcionamento do Supremo Tribunal Federal pelo excesso de demandas. Banalizar-se-ia o instituto, tal como o recurso extraordinário, antes da Emenda Constitucional nº 45.
De imediato não vislumbramos nenhum prejuízo de impossível reparação à pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público, diante da existência de outros instrumentos jurídicos, para salvaguardar o direito violado. Na hipótese de se querer, a todo custo, defender o preceito fundamental, na ausência de mecanismo específico, ao cidadão cabe representar ao Procurador-Geral da República para tal fim.
Como o art. 103 da Constituição Federal disciplina a participação do Procurador-Geral da República (§ 1º), bem assim a do Advogado-Geral da União, na Ação Direta de Inconstitucionalidade, e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental tem para com esta um certo grau de identidade, entendemos por bem falar sobre a participação desses agentes políticos.
O Advogado-Geral da União não é parte no processo objetivo. É corrente a idéia de que se trata mais de um curador para a norma acoimada de desrespeitar a Constituição, quando se tratar de controle concentrado47.
A Lei da Argüição apenas se refere à manifestação do Advogado-Geral da União quando trata da concessão de medida liminar, para facultar ao relator sua oitiva previamente à outorga da medida, no prazo de cinco dias. Nestes casos, portanto, a manifestação do Advogado dependerá da avaliação a ser feita pelo relator do feito48.
Como mencionamos anteriormente, a Constituição Federal impõe a necessidade de se ouvir, previamente, o Advogado-Geral da União, a fim de defender o ato ou texto impugnado, quando o Supremo Tribunal Federal for apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo.
Assim, transpondo a regra constitucional para a argüição, sempre que se estiver alegando descumprimento de preceito fundamental levado a efeito por ato normativo, de qualquer nível ou espécie, terá de ser “citado” o curador, durante o processo, para fins de atuar na defesa do ato49.
No que concerne à participação do Procurador-Geral da República junto ao processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, igual pensamento deve ser aqui aplicado.
Ainda mais quando a própria Lei de Argüição disciplina a matéria, dizendo que o Ministério Público nas argüições que não houver formulado terá vista do processo, por cinco dias, após o decurso do prazo para informações (parágrafo único do art. 7º).
Apenas para podermos compreender esse dispositivo legal, segundo o modo de ver da Constituição Federal, acrescentamos que o Ministério Público indiferentemente de ocupar a posição de autor da ação ou não, sempre há de oferecer seu parecer, enquanto ocupar a posição de custos legis50.
Numa interpretação conforme à Constituição, há de ser tal regra compreendida no sentido de que, além de pronunciar-se, necessariamente, naqueles processos em que já funciona, as palavras “membro do Ministério Público” terão acolhimento também nos demais processos de argüição de descumprimento, seja na principal, seja na de caráter incidental. Independe, pois, da verificação de quem seja o requerente51.
8. Procedimento: da ação à decisão
O procedimento da argüição de descumprimento de preceito constitucional, a ser percorrido por um dos legitimados, a fim de se alcançar a prestação jurisdicional, não é dificultoso, tendo em vista a clareza da Lei nº 9.882/99.
Proposta a ação diretamente no STF, deverá o Relator examinar a regularidade
formal da inicial, que deverá conter: a) a indicação do preceito fundamental que se considera violado; b) a indicação do ato questionado; c) a prova da violação do preceito fundamental; d) o pedido, com suas especificações; e) se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado (art. 3º, da Lei nº 9.882/99).
A petição inicial, acompanhada de instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação (parágrafo único do art. 3º da Lei nº 9.882/99).
Com relação à procuração, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da ação direta de inconstitucionalidade, afigura-se recomendável que a procuração contemple poderes específicos para promover a argüição.
Mais ainda do que nas ações diretas de inconstitucionalidade, alerta o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, a indicação do preceito fundamental violado assume peculiar significado na argüição de descumprimento. Não será suficiente a simples indicação de possível afronta à Constituição, devendo caracterizar-se, fundamentadamente, a violação de um princípio ou elemento básico. Também aqui se faz indispensável fundamentar o pedido em relação a cada uma das impugnações52.
Não sendo o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, por faltar algum dos requisitos apontados acima, o Relator indeferirá liminarmente a petição inicial. Dessa decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias (art. 4º, da Lei nº 9.882/99).
Uma vez proposta a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental não se admitirá a sua desistência, nada obstante não haver na lei em regência nenhum regramento a esse respeito. Isto porque trata-se de demanda que visa a defesa de interesse público geral. Alem do mais, a ação direta de inconstitucionalidade, com quem guarda certa simetria, prever expressamente a impossibilidade de se desistir da ação (art. 16, da Lei nº 9.868/90).
Proposta a argüição e recebida a inicial, o Supremo Tribunal Federal poderá, por decisão da maioria absoluta de seus membros, deferir pedido de medida liminar. Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno (art. 5º, da Lei nº 9.882/99).
A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada (art. 5º, § 3º).
Solicitadas as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias, ouvidas ou não as partes nos processos que ensejaram a argüição, o Relator lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para julgamento (arts. 6º e 7º).
Percebemos aqui que o legislador optou por um processo aberto, com a presença do amicus curiae, ao outorgar às partes nos processos subjetivos o direito de participação no processo objetivo. Apenas, concedeu esse direito ao relator, para, no caso concreto, poder controlá-lo.
Em face desse caráter objetivo do processo, é fundamental que não só os representantes de potenciais interessados nos processos que deram origem à ação de descumprimento de preceito fundamental, mas também os legitimados para propor ação possam exercer direito de manifestação. Independentemente das cautelas que hão de ser tomadas para não inviabilizar o processo, deve-se anotar que tudo recomenda que, tal como na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental assuma, igualmente, uma feição pluralista, com a participação de amicus curiae53.
Antes de o Relator lançar o relatório e pedir dia para julgamento, poderá, se entender necessário, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria (arts. 6º, § 1º).
Tem-se também aqui um processo estruturalmente aberto, que permitirá não só a participação dos interessados nas causas que, eventualmente, tenham dado ensejo à propositura da ação de descumprimento de preceito fundamental, mas também a manifestação de peritos e especialistas no tema54.
Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental (art. 10). A decisão sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros (art. 8º).
A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3º). Ou seja, a decisão nessa argüição terá eficácia erga omnes, de modo que se imporá a todas as ações colhidas pela argüição, e efeito vinculante, ou seja, será obrigatória para o futuro para todos os órgãos judicantes e administrativos55.
Tal qual sucede na Ação Direta de Inconstitucionalidade, como exceção à regra geral do princípio da nulidade, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (art. 11).
A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 12).
9. Aspectos controvertidos
Em face da similitude da ação direta de inconstitucionalidade com a argüição de descumprimento de preceito fundamental, algumas vozes em contrário, minoritárias é bem verdade, chegam a questionar a necessidade desta ação no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que, em muitos casos, haveria ação com nomenclatura própria para defender o direito violado.
Ou seja, ter-se-ia uma superposição de institutos, vale dizer, constituiria a argüição uma verdadeira demasia, relegando-a ao esquecimento e desuso56. Ou melhor, como se diz no popular, “a norma é letra morta na nossa ordem legal”.
Em defesa da não duplicidade de institutos voltados à defesa do mesmo bem jurídico e da desnecessidade da argüição no mundo jurídico, José Afonso da Silva destacou que o descumprimento não se confunde com a pura inconstitucionalidade. Se o constituinte utilizou termos diversos é porque devem referir-se a fenômenos também diferentes57.
Acrescenta, em seguida, que o descumprimento, para o fim da argüição prevista no § 1º do art. 102 da CF e na Lei 9.882, de 3.12.1999, refere-se à violação de preceitos fundamentais decorrentes da Constituição, enquanto a inconstitucionalidade constitui uma forma de violação de qualquer preceito ou princípio constitucional. A lei só admite o descumprimento de preceito fundamental por atos do Poder Público (art. 1º). Atos do Poder Público podem ser normativos ou simplesmente materiais. Ora, é importante observar esse aspecto, porque, segundo o STF, a ação direta de inconstitucionalidade só é cabível contra lei ou ato normativo federal ou estadual (CF, art. 101, I, “a”)58.
Por outra vertente, André Ramos Tavares defendeu que a possibilidade de utilização de duas ações diversas, que pretendem alcançar uma mesma finalidade, dentro da chamada jurisdição constitucional, de há muito já existe no Direito pátrio59.
Adicionou, ainda, que a argüição é medida tão primordial (ou principal) quanto a ação direta de inconstitucionalidade – ou até de relevância superior, se se quiser. A afirmação tem como fundamento a posição constitucional do instituto. No próprio art. 102 da Constituição encontra-se a regra matriz tanto da argüição como da ação direta, ambas presentes no texto original da Constituição de 198860.
Quando a Constituição trata da ação direta, estabelece que esta se refere ao caso de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual. Quando a Constituição trata da argüição, estabelece que esta se refere ao caso de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade61.
A impressão que se tem, à primeira vista, é a de que o legislador da Lei nº 9.882/99 tentou diminuir a importância da ação de argüição, desvirtuando-a do que estabeleceu o constituinte de 1988. Aumenta essa impressão, à medida que se lê o disposto no seu § 1º do art. 4º, ao dispor que: não será admitida a argüição de descumprimento de preceito constitucional, quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.
A interpretação válida da lei só pode ser encontrada no sentido de considerar ter o legislador pretendido propiciar o cabimento da argüição também em todos os demais casos em que o descumprimento de preceito constitucional fundamental não possa ser sanado por não encontrar via adequada, o que será especialmente aplicável no caso da argüição incidental, já que esta contém um condicionamento maior para sua admissibilidade, ao exigir a relevância da questão. No momento da revelação do que se denomina na relevância, a regra do § 1º em comento pode ser útil. Sim, porque certamente uma das alternativas para demonstrar a relevância exigida pela lei poderá ser a falta de outra via adequada, além da necessidade de resolução imediata e geral da questão. Dessa forma, a conjugação do parágrafo único do art. 1º com o § 1º do art. 4º acaba conformando um perfil amplo para a medida62.
10. Conclusão
Em conclusão, podemos afirmar que a argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista pelo § 1º, do art. 102, da Constituição Federal, e regulamentada pela Lei Federa nº 9.882/99, veio aprimorar e melhorar o sistema de controle de constitucionalidade, trazendo vários benefícios dentro da chamada jurisdição constitucional.
Dentre esses benefícios podemos citar o de que ação de argüição engloba toda e qualquer violação de norma constitucional, ou seja, tanto pode abranger o descumprimento de preceito da Constituição, como de ato normativo como ato administrativo, e, ainda, atos particulares.
Além disso, não poderíamos esquecer de assinalar o benefício direto que a ação de descumprimento de preceito fundamental trouxe para a jurisdição constitucional, como: a regulamentação do direito pré-constitucional; o controle direito de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal; a declaração de constitucionalidade do direito estadual e municipal.
De igual modo, poderíamos destacar ainda, a título de benefício, a despeito da ação de argüição, as hipóteses de incidência defendidas pelo Ministro Gilmar Mendes, tais como: a lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial; a contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal.
Como bem ponderou o Professor e Ministro Gilmar Ferreira Mendes, a ADPF passa a ter um importante papel no fechamento do modelo de controle desenvolvido pela Constituição de 1988. Ao permitir que as questões constitucionais excluídas do sistema tradicional de controle abstrato sejam alçadas diretamente ao Supremo Tribunal Federal. A ADPF introduz uma radical mudança no modelo brasileiro de controle de constitucionalidade. Não só o direito pré-constitucional e o direito municipal, mas também as decisões judiciais proferidas nas instancias ordináias poderão se submetidas ao Supremo, sem que seja observada a via ortodoxa do recurso extraordinária63.
A estrutura procedimental aberta permite que os possíveis afetados pela decisão habilitem-se no processo perante o Supremo Tribunal. A técnica da decisão incorporou a flexibilização implementada, inicialmente, no art. 27 da Lei n. 9.868/99, ensejando a possibilidade de que o Tribunal faça os necessários ajustes com base no princípio da segurança jurídica ou em outro postulando constitucional64.
Essa ação constitucional possibilita, sem sobra de dúvida, uma maior efetividade no controle das ilegalidades e abusos do Poder Público e na concretização dos direitos fundamentais.
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1 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pág. 268.
2 Idem, ibidem, pág. 262.
3 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 262.
4 Idem, ibidem.
5 André Ramos Tavares, op. cit. págs. 262/263.
6 FARIA, Cássio Juvenal. Apud Pedro Lenza in obra: Direito Constitucional Esquematizado, 7. ed., São Paulo: Editora Método, 2004, pág. 126.
7 BULOS, Uadi Lammêgo. Apud Pedro Lenza in obra: Direito Constitucional Esquematizado, 7. ed., São Paulo: Editora Método, 2004, pág. 126.
8 DA SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, pág. 554.
9 MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. In Processo nos Tribunais Superiores, Marcelo Andrade Feres, Paulo Gustavo M. Carvalho, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2006, pág. 515.
10 Idem, ibidem.
11 Idem, ibidem.
12 TAVARES, André Ramos, op. cit. pág. 263.
13 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 7. ed., São Paulo: Editora Método, 2004, págs. 124/125.
14 Pedro Lenza, op. cit. pág. 125.
15 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 264.
16 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 264.
17 Idem, ibidem.
18 Idem, ibidem.
19 DE MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pág. 712.
20 Idem, ibidem, pág. 713.
21 Idem, ibidem, pág. 713.
22 Alexandre de Morais, op. cit. pág. 709.
23 Idem, ibidem.
24 Idem, ibidem.
25 Alexandre de Morais, op. cit. pág. 709.
26 SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1996, pág. 177.
27 BAUM, Lawrence. A Suprema Corte Americana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pág. 26.
28 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág. 531.
29 Idem, ibidem.
30 Idem, ibidem.
31 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág. 531.
32 Idem, ibidem.
33 Idem, ibidem.
34Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág.532.
35 Idem, ibidem, pág. 532.
36 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág.532.
37 Idem, ibidem, págs. 532/533.
38 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág.533.
39 Idem, ibidem.
40 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág.533.
41 Idem, ibidem.
42 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág.535.
43 Pedro Lenza, op. cit. pág. 126.
44 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 269.
45 Idem, ibidem.
46 Idem, ibidem.
47 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 270.
48 Idem, ibidem.
49 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 270.
50 Idem, ibidem.
51 Idem, ibidem.
52 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. 539.
53 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. págs 540/541.
54 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág. 542.
55 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pág. 41.
56 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 265.
57 José Afonso da Silva, op. cit. pág. 554.
58 Idem, ibidem.
59 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 265.
60 Idem, ibidem, págs. 266/267.
61 Idem, ibidem, pág. 267.
62 André Ramos Tavares, op. cit. pág. 267.
63 Gilmar Ferreira Mendes, op. cit. pág. 544.
64 Idem, ibidem.